Linha de Frente

É no hospital que as histórias de vida começam e terminam

Linha de Frente - Gerson Salvador
Gerson Salvador

Sobre renascer

Criança lança flores na sepultura alheia, em homenagem à mãe morta pela Covid

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Menina em pé de jaqueta rosa e camiseta azul em casa de madeira olhando crianças brincando em área aberta.
Escola na zona sul da cidade de São Paulo. Na foto, crianças brincam em área aberta. - Keiny Andrade/Folhapress

Houve morte, houve dor, houve silêncio. Eu estava no meio da tempestade, tentando amenizar a situação como o colibri da fábula, que jogava água com seu bico para tentar conter o incêndio na floresta. Muitos outros, como eu, faziam o mesmo.

Enfim, com a queda dos casos e das mortes pela Covid-19, tirei férias de trinta dias e retornei a mim, no sertão da Bahia.

Depois de três anos, aproveitei o abraço e a bença de vô. Pelas veredas de areia as coisas pareciam mais amenas.

Visitamos o roçado para ver a criação de cabras, meus filhos brincaram com os cabritos e se equilibraram no dorso da égua baia.

Foi lá que eu conheci Graça. Ela olhava para minha garotinha de quase oito anos: era o mesmo que ver a neta, dizia.

A menina passou oito meses do último ano com ela, do povoado para a roça, entrosadinhas.

Graça começou a acumular água nos olhos enquanto via minha filha, parecia saudade.

A filha de Graça, mãe da criança, morreu aos trinta, mais uma vítima do coronavírus, o pai não conseguiu lhe contar sobre a morte, houve um pacto não declarado: nada se comentava. Era melhor passar uns dias com a avó no sertão.

Para o velório, com todos os protocolos, caixão fechado, resolveram não levar a criança. Graça não se despediu da filha, mas assumiu sua cria.

Certa feita, morreu de câncer uma senhora no Deixaí, logo ali perto, e ambas foram convidadas para o velório.

Enquanto se aprontavam, a menina perguntou definitivamente: esse hospital nunca mais vai dar notícias de mãe não?

Notícias de mãe.

Não.

A avó respirou fundo e procurou palavras.

A mamãe está morta que nem essa mulher, amor. Ela foi pro céu, pr’on’tá o vovô.

A bichinha ficou cabisbaixa nos instantes seguintes. No povoado, colheu três flores e as guardou durante todo o velório da senhora.

Quando o caixão foi baixado na terra, a menina se aproximou.

Essa florzinha é para a senhora; essa é para minha mamãe. Beijou e colocou a flor junto ao peito antes de lançá-la na sepultura alheia; essa é para o vovô.

Depois desse dia poderiam falar sobre o assunto, assim a criança e Graça se apoiaram mais de perto. Quando a menina estava melhor para o retorno o pai foi lhe buscar e a reconduziu à cidade distante.

Quando nos despedimos Graça olhou nos olhos de minha menina mais uma vez, com dor e ternura.

A caatinga estava exuberante, verde, houve chuva nos últimos tempos. Quem as via, Graça e a caatinga, poderia concluir que a vida impõe recomeços improváveis, apesar de tudo.

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