Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu
Mente

Jô Soares: os bastidores de um obituário

Passei oito anos me segurando e não pedi um título a ele

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Hoje, a Folha publicou obituário do Jô, escrito por mim. Escrevi há oito anos, pensando no que falar quando ele morresse. Difícil imaginar um texto sem a concretude, a morte em si. Mas esse exercício é importante e faz parte de uma pesquisa que nós, jornalistas, devemos pensar com antecedência, em homenagem às pessoas que trarão uma comoção nacional ao partirem.

Eu vejo essa pesquisa como uma imensa responsabilidade. Sou apaixonada pela escrita de obituários, falo deste tema o tempo todo. Além de nos encantarmos com uma história pessoal, tentando entender as decisões foram tomadas ao longo da vida, podemos enxergar como ela representou toda uma época e o contexto histórico em que estamos inseridos. Como nossa sociedade veio a ser o que é.

Imagem preta e branca mostra homem gordo, com charuto na boca e olhando para cima
Jô Soares em foto de Marcio Scavone - Marcio Scavone

Estudei toda a biografia do Jô, disponível na época. Fucei a hemeroteca digital, livros, artigos, depoimentos.

Não passava pela minha cabeça que meses depois da entrega do texto, em pleno primeiro de janeiro, tocaria meu telefone: "Camila Appel, desse blog Morte sem Tabu? Aqui é Jô Soares". Achei que era trote. Não era.

Ele tinha lido uma coluna minha, adorou, descobriu meu telefone e ligou para falarmos sobre morte, vida, poesia. Eu não contei que tinha acabado de fazer um possível obituário para ele.

Eu queria, deveria, ter falado: ‘sou eu! E por acaso, acabei de escrever o que pode vir a ser usado como seu obituário. Você gostaria de dar um título? Ninguém melhor do que você para achar um título desses. Tudo o que penso soa péssimo, não chega aos seus pés'. Claro que eu não falaria desse jeito, mas não ousei fazer tal pergunta e entreguei o texto sem o título. Todos soavam como se eu estivesse minimizando uma pessoa grandiosa.

Vamos aos títulos dos obituários dele. Os primeiros do dia tentam descrever quem ele foi, em uma linha. Exibido assumido, multitalentoso, tinha humor como visão de mundo, era um ícone, um gênio, marcou a cultura do país. Nasceu rico, mas não foi esnobe. Alguns trazem a idade: 84. Quem lê, já avalia: É muito? pouco? É uma idade aceitável? Peraí, quantos anos tem minha mãe? Ih, ta perto, meu deus!

Logo, aparecem os títulos que tentam fugir da biografia e buscam trazer novidades, algo inédito, resgatar alguma polêmica, uma tristeza. Ele perdoou o taxista que atropelou a mãe, perdeu um filho autista, tem uma coisa que relaciona Roberto Marinho e vingança (não entendi direito), e assim segue.

Poxa. difícil pacas achar um título de obituário! E por que raios, eu me contive durante tanto tempo, querendo pedir um a ele?

Depois dessa ligação de ano novo, começamos a trocar e-mails. Em um deles, Jô cita Proust: " o tempo é o senhor da razão". Sempre carinhoso, joga frases que rendem um mês de sorriso no rosto: "Gerações diferentes com cabeças tão parecidas. Viva a sua inteligência e a sua inquietação constante".

Contei que eu era uma das roteiristas do Conversa com Bial. Jô ficou eufórico, encheu Pedro de elogios.

Aí, alguns meses depois, no final do ano (estamos em 2017), ele publica uma autobiografia, escrita com Matinas Suzuki. Eu vou mergulhando ainda mais na história do Jô. E continuo com o obituário um tanto entalado. Estaria eu, sucumbindo ao meu próprio tabu? Seria antiético contar isso a ele? Em que raios de posição me encontro?

Na pesquisa para o Conversa com Bial, tenho uma grata surpresa. Minha mãe avisa que sua amiga, a bióloga maravilhosa Ana Clara Schenberg tem uma carta escrita pelo seu pai, o físico Mario Schenberg , contando a ela que durante a ditadura, Jô o escondeu da polícia, em sua casa. Ana Clara participa da plateia do programa e Jô se emociona ao ouvi-la falar do Mario. Depois me pede a carta, cedida por Ana Clara. Fiquei muito feliz.

Abraço o Jô após a entrevista, não tiro uma foto sequer. Mas fico com a descrição que ele fez de mim por email: "sua elegância 'degagé', numa displicência super chique". Fui olhar no dicionário para entender o que isso significa. Continuei não entendendo.

Hoje, levei um susto quando acordei, vi a morte do Jô, meu texto ali e me arrependi de não ter compartilhado isso com ele naquela época. Poderíamos ter trocado muito.

E já aproveito para deixar um convite. Quem quiser escrever um obituário comigo, Camila, ou para o Morte sem Tabu, para ficar aqui guardado a sete chaves, em segredo absoluto, não hesite em nos procurar.

Mas será que o obituário, necessariamente, traz a visão do outro, da sociedade, e não de si mesmo? Acho bonito termos os dois tipos. Podermos acordar com a voz da própria pessoa que morreu liderando a pauta do dia. A manchete que ela escolheu abraçando nosso luto, esse vazio de perdermos alguém que admiramos muito.

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