Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Uma funerária, uma capela, um hospital

Memórias da última vez em que meu pai foi internado

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rua da cidade de Cabo Frio em que há um hospital, uma capela e uma funerária
Rua da cidade de Cabo Frio em que há um hospital, uma capela e uma funerária - Google street view

Fazia vinte anos que meu pai não era internado.

Então com 18, no meio de um carnaval no litoral de São Paulo, a notícia me preocupou, mas não o suficiente para temer algo mais sério.

No último dia 28 de dezembro, foi bem diferente.

Depois de alguns bons anos de estudos sobre doença, vida e morte, minhas percepções são outras e eu não resisto a uma olhada nos resultados dos exames. "Seja honesta comigo, doutora".

O paciente já não é mais jovem e tem certas questões de saúde.

Acima de tudo, ele agora é o avô da minha filha e o medo de perdê-lo nunca foi tão grande.

Uma infeliz coincidência me deixou mais assustada. Eu conversava sobre a notícia da internação do diretor Dennis Carvalho por sepse (infecção generalizada), minutos antes de saber que meu pai estava com uma infecção muito alta.

Desde que escutei pela primeira vez sobre pessoas que ficam gravemente doentes e morrem, porque o corpo não consegue combater infecções, soube que não aceitaria bem uma perda assim. Dá uma sensação de morte estúpida, evitável. Vi pessoas próximas entrando em um hospital sem queixas sérias de saúde evoluírem mal muito rapidamente.

Ainda antes da pandemia, li que as superbactérias podem ser a principal causa de morte em algumas décadas. Com o uso descontrolado de antibióticos nos últimos anos, isso pode acontecer mais cedo. Câncer e doenças cardiovasculares, os campeões atuais, seriam deixados para trás.

Os resultados dos exames de sangue do meu pai assustaram a médica plantonista, que indicou a internação. Estávamos em Cabo Frio, onde ele e minha mãe passam grande parte do tempo, desde sua aposentadoria. O caminho de casa até o hospital levava menos de dois minutos, mas eram dois minutos difíceis: primeiro, eu passava em frente a uma funerária, com caixões bem expostos; depois, vinha uma capela com familiares rezando por seus doentes; por fim chegava ao hospital.

Mesmo que já não estivesse o tempo todo na minha cabeça, seria difícil não ver a sombra da morte pairando no ar. Era quase como ver um filme da vida ao contrário.

Impossibilitada de passar a noite acompanhando meu pai, pelas dificuldades logísticas inerentes à vida da mãe que amamenta, voltei no dia seguinte à internação, logo no início do horário das visitas. Devidamente vestida dessa vez, porque, no dia anterior, havia sido impedida por não estar usando saia (abaixo dos joelhos) ou calça. Os sapatos também precisavam ser fechados. Entre denunciar o absurdo e correr para casa para trocar de roupa, fiquei com a segunda opção.

"Meu pai que está aí só tem bermudas".

"O paciente tudo bem".

Subi com o café da minha mãe, que ele tinha pedido para trazer. "Mas até que esse do hospital não é dos piores".

O quarto era confortável, apesar de pequeno. Um sofá duro ficava de frente para a televisão.

Papi, como o chamamos, estava encostado com a perna na cabeceira, fazendo uma daquelas questões de Lógica da Revista Coquetel.

"Até hoje você gosta disso, né papi? Lembra quando você usava isso para contratar pessoas?"

Há quase onze anos, eu passei por uma situação muito dolorosa com a minha mãe, que ajudou a moldar a forma como encaro o tempo. Ela ficou muito doente e o prognóstico não era bom. Eu não fazia ideia de qual era a chance de ela estar viva ou saudável nos meses seguintes e me agarrei com todas as forças a cada momento que passávamos juntas, mesmo quando ela mal se mexia na cama.

Tive que redimensionar a ideia de futuro e passar a valorizar cada minuto de presença.

É um ponto de virada na nossa vida, quando percebemos que uma quinta modorrenta qualquer, com clima feio, uma alergia chata e absolutamente nenhum evento ou motivo para ser especial, pode representar alguns dos momentos mais importantes da nossa história. Até hoje, com minha mãe viva e saudável, apesar das suas limitações, os dias que passamos juntas naquela fase tão difícil guardam algumas das memórias mais importantes e bonitas que tenho.

Porque eu estava presente. Por inteiro.

A relação com ela sempre foi mais fácil do que com meu pai, porque a conversa flui sem esforços. Minha mãe não tem barreiras sobre qualquer assunto. Eu adoro saber do passado, da história de vida dela, dos seus pais e avós. Meu pai, por sua vez, não fala sobre várias coisas e eu me sinto tateando sobre os temas possíveis.

Algum tempo atrás, comprei aqueles livros para nossos pais contarem as nossas histórias. São perguntas como "do que eu gostava quando era criança?", "qual era minha brincadeira preferida?", "como foi meu primeiro dia de aula?". Sempre foi muito importante para mim conhecer as memórias que sei que se vão conforme a gente vai perdendo as pessoas que podem contá-las. Então insisto para que eles respondam as perguntas.

O da minha mãe tem várias respostas detalhadas e completas. O do meu pai tem "pergunta para a sua mãe" em quase todos os poucos espaços que ele aceitou preencher.

Sei que parece engraçado, mas, de verdade, não é fácil.

Apesar disso, sem saber o que viria nos resultados dos exames após o início dos antibióticos, e com muito medo de meu pai precisar passar para uma unidade de tratamento intensivo com visitas restritas, eu estava determinada a absorver o máximo do presente.

Lado a lado no sofá duro, passando os canais aleatoriamente, ele se alegrou ao perceber que vários deles mostravam diferentes pontos da cidade ao vivo. "A nossa televisão não tem esses canais hein". Se nós estivéssemos em casa em um dia qualquer, eu provavelmente estaria fazendo outra coisa, lendo notícias irrelevantes no celular, enquanto ele falava sobre o que era cada lugar há 30 anos.

Mas não ali, apertadinhos, aproveitando cada gota de presente, de presença.

"Esse lugar eu não tô reconhecendo. Ah! Parece o da foto do corredor, vem cá para eu te mostrar".

Saí para ver a minha filha e buscar coisas de que ele tinha dado falta. "Traz um chocolatinho".

Depois que voltei, ficamos muitas horas assistindo à cobertura da morte do Pelé. Eu ouvia cada coisa com atenção, admirada pela capacidade de uma pessoa de quase 70 anos contar histórias relacionadas a tudo que diziam, pela memória de fatos diversos de 40 anos atrás.

Ligamos para casa para que meu pai pudesse ver a única neta, que estava estranhando seu sumiço, depois de muitos dias grudados. "Amanhã o vovô volta", ele estava bem confiante.

Faixada parcial de um hospital na cidade de Cabo Frio/RJ, em que um homem dá tchau da janela para a neta, que está no colo do pai na rua
Meu pai dá tchau para a neta da janela do hospital - Foto de arquivo

Minha mãe chegou ao hospital e eu fui embora. Alguns minutos depois, pedi para aparecerem na varanda.

"Ali o vovô, filha".

Não vai ser a última vez que vocês se veem, eu mentalizei. Mas se fosse, para sempre teríamos a memória do último abraço à distância.

No dia seguinte, tivemos alta. Comemoramos como se fosse a cura de uma doença grave, o fim de uma longa estadia no hospital. Um dia especial, como são todos aqueles em que lembramos que seguimos vivos e podemos estar presentes na vida das pessoas que amamos. Um dia como outro qualquer.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.