Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Vida, morte e carnaval

Arlindo Cruz foi reverenciado e sentiu todo amor emanado

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O sambista não precisa ser membro da academia

Ao ser natural em sua poesia, o povo lhe faz imortal

Eu sou apaixonada pelo desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro.

Geralmente, estudo o que vai passar na avenida, decoro todos os sambas e grudo na grade para não perder nenhum detalhe. Canto junto, abro meu melhor sorriso.

No último domingo, o primeiro na Sapucaí desde que minha filha nasceu, foi diferente. Mal tive tempo de chegar à cidade, quem dirá ler as letras das músicas. Uma lástima. Ciente de que a grade pertence a quem sabe o que está fazendo e sem querer aumentar os riscos de contrair Covid, fiquei à distância, em um olhar mais observador do que participativo.

Minha última vez no sambódromo tinha sido em 2019. O carnaval mais político em que já estive. A resistência ao governo agora derrotado tomou as escolas e levou muitos de nós às lágrimas. Uma catarse.

Embora o carnaval seja sempre um evento político, eu estava pensando em outras coisas quando a Império Serrano entrou homenageando Arlindo Cruz. Lembrei logo da minha mãe e da sorte que tivemos quando ela teve seus AVCs hemorrágicos. Uma sorte que a maior parte dos pacientes que passa pela mesma coisa não tem. Que Arlindo não teve.

Fiquei emocionada, não sei se por ela ou por ele. Medi as vozes quando a escola entoava "Madureiraaaa", pensando se as pessoas estavam cantando com a força que ele merece.

Quando minha mãe teve os primeiros eventos, em 2012, eu fui sua cuidadora principal. Olhando em retrospectiva, eu nem deveria ter lamentado, porque, afinal, ela teve uma recuperação incrível e nós agradecemos diariamente por isso. Mas sem saber o que viria pela frente, a exaustão, física e emocional, era às vezes quase intolerável. Eu tinha 28 anos, não era nenhuma garotinha, mas nunca tinha trocado uma fralda, nem mesmo de bebê. De todo modo, nada teria me preparado para o nível de cuidado que a minha mãe passava a exigir.

Depois de muitos dias exclusivamente por conta dela, ainda sem saber o que aconteceria nos próximos meses, mas com um início de recuperação promissor, fui ao show do Arlindo Cruz com a minha prima, em Petrópolis. Coisa rápida, umas cinco músicas, só para respirar um ar. "Nós iremos achar o tom/ Um acorde com um lindo som/ E fazer com que fique bom/ Outra vez, o nosso cantar/ E a gente vai ser feliz/ Olha nós outra vez no ar/ O show tem que continuar".

A música, uma das mais famosas do Arlindo e do Fundo de Quintal, data de poucos anos depois do meu nascimento. Eu já tinha ouvido, claro, mas nunca tinha prestado muita atenção na letra.

Naquele dia, eu a adotei como música do renascimento da minha mãe, da minha família. Três anos depois, na festa do meu casamento, eu estava no banheiro quando ouvi os primeiros acordes da banda. "Se o teu choro já não tocaaaa".

A missão de colocar de volta um vestido de noiva não é das mais fáceis, mas eu tinha que chegar lá. Saí correndo, ao melhor estilo noiva em fuga. Alguém tentou me parar: não posso, tenho um compromisso. Não tinha combinado nada com ninguém, subi tentando não tropeçar naquele monte de pano e pedi um microfone a tempo de olhar para a minha mãe, logo ali na frente, e entoar os versos finais de "quem duvida e hoje diz/ acabou vai se admirar/o show tem que continuar/ la laia lalaialaia / la laia lalaialaia/ nosso amor vai continuar".

Não estava pensando nisso quando o carro com uma imagem enorme do Arlindo passou. Achei que estava muito branco para representar o homem negro que é um dos melhores sambistas de todos os tempos. Pensei no embranquecimento de Machado de Assis, que faz com que, até hoje, muita gente não saiba que o maior escritor brasileiro era negro.

Singer Arlindo Cruz of Imperio Serrano samba school participates in the first night of the carnival parade at the Sambadrome, in Rio de Janeiro, Brazil February 19, 2023. REUTERS/Ricardo Moraes ORG XMIT: MEX - REUTERS

Político. O carnaval é um evento político.

A Império tinha acabado de encerrar o desfile quando a Sapucaí começou a aplaudir alguém. "Será que estão vendo o Arlindo?"

Não. Era o homenageado seguinte da noite. O unânime Zeca Pagodinho, enredo da Grande Rio, voltava pela pista para ser o destaque do último carro da escola, erguendo uma cervejinha. Ovacionado.

Minha vertente Morte sem Tabu assumiria a partir dali. Duas homenagens tão bonitas, das maiores que alguém pode receber. O maior espetáculo da Terra. Tributos em vida, embora em vidas tão diferentes. Talvez ambos tenham se emocionado igualmente, mesmo que para um deles a participação fosse tão limitada.

Já faz um tempo que penso em como é raro que as pessoas consigam suas homenagens enquanto ainda estão em plenas condições de aproveitá-las. Em quanta gente não vai receber em vida o amor que será garantido depois.

Quem já não pensou em como seria interessante presenciar o próprio velório? Descobrir como fomos pelos olhos das pessoas que se importam o suficiente para comparecer?

A Camila Appel sempre fala sobre a importância dos obituários. E eu acho que todo mundo devia ter direito a um obituário em vida. A se sentir amado com a intensidade que geralmente guardamos apenas para os mortos.

Imagino que uma grande parte dos leitores se lembre do Orkut, rede social que ganhou o coração dos brasileiros na época em que eu estava na faculdade, lá por 2004, 2005. Uma das funções eram os testimonials, depoimentos que seus amigos deixavam sobre você. Palavras gentis, demonstrações de que as pessoas nos conheciam. O mais próximo que já vi de um obituário. Carinho e homenagens públicas em vida. Bons tempos.

Já era a hora do Salgueiro e eu tinha que ir embora. A primeira vez em que não coloquei minha filha para dormir em mais de vinte meses cobrava seu preço. Mas era meu aniversário e eu aguardava a chance de tirar uma foto com um pedacinho de bolo e sua vela apagada, um carro alegórico aparecendo atrás. "Vamos só esperar o primeiro".

"Você não vai acreditar em quem parece estar ali atrás", diz o meu marido enquanto seguro o bolo fingindo apagar a vela. "A morte. Tinha que ser esse carro mesmo para você cantar seu parabéns".

Integrantes da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro desfilam no dia 19 de fevereiro de 2023. Alguns usam roupas vermelhas e um deles usa uma roupa preta que lembra a imagem da morte
Desfile da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro no dia 19 de fevereiro de 2023 - Arquivo pessoal

A morte sempre faz a gente lembrar que está vivo. Mais um ano vivo.

No meu último ano na Sapucaí, em 2019, tinha desfilado pela Império Serrano. Foi muito emocionante participar de uma forma de homenagem a Gonzaguinha, cantando que ninguém quer a morte, só saúde e sorte. Quando saiu o resultado da apuração e a escola foi rebaixada, fiquei arrasada. Não teríamos ficado à altura da música?

Hoje, apesar de mais um rebaixamento da escola de Madureira, não estou triste. Arlindo foi reverenciado no seu mundo, e, de alguma forma, sei que sentiu todo o amor que lhe foi emanado. É o povo que lhe faz imortal. Tanto faz o resultado sobre alegorias e adereços a que tenham chegado os membros da academia.

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