Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente câncer Rita Lee

Por que acho difícil comemorar (tanto) a remissão do câncer

Precisamos de mais responsabilidade na forma de comunicar resultados em saúde

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Esta semana, diversos canais de notícias repercutiram a notícia de que um paciente com câncer há 13 anos teve remissão completa em São Paulo, após tratamento com CAR-T Cell.

Não é a primeira vez que a mídia repercute casos de remissão completa, não será a última. Mesmo que ninguém acompanhe o que vem depois, comemora-se como se estivéssemos, enfim, perto da sonhada cura. Não apenas perto da sonhada cura para aquele paciente que, geralmente, já é considerado fora da curva, mas da cura geral e irrestrita de todos os cânceres. Das doenças que temos hoje, das doenças que podem matar nossos amores, do câncer que eu ainda nem tenho, mas posso descobrir a qualquer momento e quero saber que algo na medicina pode me salvar.

Há uns 10 anos, acompanhei, como Advogada da União, o caso de uma paciente que tinha câncer de pulmão metastático. Ela dizia, no processo, que, pelo tratamento convencional, sua expectativa de vida era de 20 meses. Pedia ao juiz que a União fosse condenada a arcar com os custos de um tratamento que estava em teste nos Estados Unidos e que poderia até mesmo curá-la.

O juiz se baseou em matérias de jornal para decidir o processo. A paciente foi para os Estados Unidos e chegou a ter remissão completa por um período. Algum tempo depois, ela faleceu. Antes dos 20 meses.

Isso é só um exemplo de algo que quem acompanha casos de câncer vê acontecer. Quase nenhum vai parar na imprensa.

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Notícia de que Rita Lee estaria curada de câncer no pulmão é recompartilhada por perfil do marido da artista, Roberto de Carvalho, a partir de postagem de Gilberto Gil - Instagram/Reprodução

O Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos explica que a remissão completa significa que não há sinais do câncer – naquele momento. A cura significaria que, além disso, o câncer nunca retornará, uma constatação difícil. Por isso, alguns médicos falam em cura após 5 anos de completa remissão e outros evitam falar na palavra.

A forma como comunicamos resultados de estudos, pesquisas e tratamentos pode ter um grande impacto sobre a sociedade como um todo e sobre as pessoas individualmente. Por isso, existe um Manual de publicidade médica (Resolução CFM n. 1.974/11), que dispõe sobre o que não pode ser feito, por exemplo, na exposição na imprensa. Uma das vedações diz respeito a "apresentar de forma abusiva, enganosa ou sedutora representações visuais das alterações do corpo humano causadas por supostos tratamento ou submissão a tratamento; todo uso de imagem deve enfatizar apenas a assistência". O Manual exige, também, que afirmações não podem ser feitas se não estiverem veiculados "em publicações científicas, preferencialmente com níveis de evidência 1 ou 2". Também não é possível "utilizar gráficos, quadros, tabelas e ilustrações para transmitir informações que não estejam assim representadas nos estudos científicos e não expressem com rigor sua veracidade".

Precisamos ter grande responsabilidade na forma como divulgamos sucesso de terapias médicas ou resultados de estudos. Isso é especialmente importante na oncologia. Quem já leu "O Imperador de Todos os Males", de Siddharta Mukherjee, sabe que, em grande medida, o tratamento do câncer avançado tem sido uma sucessão de muitos fracassos ao longo do tempo.

Há alguns meses, em resposta a uma matéria sobre diferenças entre tratamentos de câncer no SUS e na rede privada, lembrei que fazer com que pacientes com câncer acreditem que está sendo dada a outras pessoas, mas não a eles, uma certeza de se curar e viver que não existe – ao menos não ainda – é irresponsável. Mais do que isso, é cruel.

Em artigo sobre pesquisa que realizei durante o doutorado acerca das expectativas equivocadas de pacientes com câncer avançado (já falei sobre ela aqui: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/morte-sem-tabu/2022/09/cancer-verdades-dificeis-demais-para-serem-ditas-em-voz-alta.shtml), concluí, após entrevistar quase 50 pacientes com câncer metastático no Brasil e na Alemanha, que, frequentemente, houve equívocos sobre porcentagens, sobre o significado de "resposta" a tratamentos e sobre remissão. E que os pacientes, em geral, tinham grande dificuldade de compreender os efetivos benefícios que podem proporcionar os resultados de exames de imagem anunciados como muito bem sucedidos, a redução de tumores ou a ausência de sua progressão, acreditando que se trata de uma curva ascendente de melhora que os levará à cura ou à longevidade.

Isso faz com que insistam, muitas vezes, em terapias que possivelmente não teriam escolhido se tivessem entendido seus verdadeiros propósitos.

Devemos comemorar a pesquisa e a universidade pública, comemorar o que pode ser realizado com investimento em ciência, celebrar, sempre, o que significa o SUS. Mas que tenhamos responsabilidade na forma como nos comunicamos. Na imprensa, nos consultórios, na sociedade.

Em tempo: para ajudar nessa comunicação com os pacientes, nada melhor do que o que chamamos de referenciamento precoce para cuidados paliativos. Cuidados paliativos, ao contrário do que a maioria pensa, não devem ser iniciados apenas quando as pessoas estão perto da morte ou quando tratamentos não funcionaram. Pelo contrário, as evidências científicas demonstram que eles devem começar desde o diagnóstico das doenças ameaçadoras da vida, o que significa que mesmo pessoas com bom prognóstico e que optem por tratamentos contra essas doenças devem ser pacientes de cuidados paliativos.

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