Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente Zé Celso (1937-2023)

Zé Celso e a Caravana da Anistia no Teatro Oficina

A arte sempre resiste

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No último dia 6 de julho, faleceu o dramaturgo e diretor teatral brasileiro José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso.

Criado por ele na década de 1950, enquanto cursava Direito na Universidade de São Paulo, o Teatro Oficina – onde também foi velado desde a noite de quinta-feira – tornou-se um símbolo de resistência à ditadura.

SãoPaulo/SP, Brasil. 07.07.2023. Publico, amigos e parentes fazem uma salva de palmas no velorio do dramaturgo Ze Celso no teatro Oficina. (Foto: Zanone Fraissat/ Folhapress, ILUSTRADA) ***EXCLUSIVO***

Em 1974, após ser preso e torturado pelo regime militar, Zé Celso exilou-se em Portugal, onde ficou até 1979.

Em 2010, após a sessão pública de reconhecimento de sua anistia, realizada no mesmo Teatro Oficina, o artista lembrou-se de quando estava sendo torturado: "me deram choques, me bateram, e depois um deles veio e ali eu vi o rosto dele, o olhar. Ele também era um ser humano. Uma pessoa dessas deve ser castigada de amor, deve receber uma tortura amorosa muito forte. As pessoas têm que gozar a vida, aí elas não são torturadoras".

Uma das pessoas presentes à sessão era o Professor José Carlos Moreira da Silva Filho, membro da Comissão de Anistia. "Zé Celso Martinez fez uma das falas mais impactantes que já ouvi sobre direitos humanos", ele disse aos nossos colegas na Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. Comovida por sua descrição, pedi que contasse um pouco mais sobre aquele dia.

Viva Zé Celso! Evoé!

Celebrar a obra de Zé Celso é também celebrar a memória de que a brutalidade, o medo e o autoritarismo interditam o espaço da arte, confinando-a na clandestinidade, onde ela sempre resiste

José Carlos Moreira da Silva Filho

No dia 07 de abril de 2010 cheguei na rua Jaceguai em Sampa, onde (r)existe o Teatro Oficina. O dia estava ensolarado e eu não tinha a menor ideia da emoção que estava por viver. Não demorou muito e eu comecei a ouvir um belo canto (depois soube que era servo-croata). Aquilo me hipnotizou e foi me arrebatando, cada vez mais alto, atores e atrizes do Oficina vestiam túnicas brancas e coroas de louros, invadiam a pista da rua, como a convidar motoristas e transeuntes a entrarem. Zé Celso estava no meio do cortejo, de terno, gravata e colete e entoava as palavras tanto enigmáticas quanto sedutoras, gesticulando e sorrindo. A esta altura, já estava com os demais Conselheiros e Conselheiras da Comissão de Anistia, e todos nós fomos convidados a seguir o cortejo teatro adentro. Fomos conduzidos por uma escada até um mezanino, no qual estavam dispostas cadeiras em círculos, estando aos seus pés, almofadas vermelhas e tinas de água quente com ervas. Ali sentamos e ato contínuo um ator ou atriz, (ou seriam adoradores de Dionísio diretamente transportados da antiga Grécia?) ajoelhou-se à frente de cada um e lavou os nossos pés! O perfume das ervas e a fumaça da água quente nos envolveu. Foi como uma espécie de portal, do qual emergimos para atravessar a passarela principal do Teatro Oficina.

Próximo ao trono, no final da passarela, que passava por vários andaimes, galerias e arquibancadas, apinhadas de gente, nos acomodamos em cadeiras e almofadas coloridas. A 35ª Caravana da Anistia da Comissão de Anistia do Brasil estava iniciada! Paulo Abrão, o Presidente da Comissão, fez as honras contextualizando a importância daquele ato simbólico/político/teatral/jurídico e chamou o Conselheiro Prudente Mello, relator do processo do Zé Celso Martinez, para fazer a leitura do seu voto. Prudente estava de terno como o anistiando, levantou-se da cadeira onde estava, tirou os seus sapatos, e, sem hesitar, adentrou na passarela, forrada por um longo tapete vermelho. Sacou o calhamaço de folhas soltas, e à medida em que ia lendo, com voz alta, empostada, de quem também já passou pelo teatro, ia caminhando pela passarela, olhando para a plateia que lotava as galerias, e soltando as folhas atrás de si, pelo chão, na medida em que as ia lendo. Foi assim que a maioria das pessoas ali presentes tiveram conhecimento da perseguição, da prisão, da tortura, do exílio que Zé Celso sofreu.

O teatro de Zé Celso era revolucionário, fazia a crítica do autoritarismo, do capitalismo, da caretice, do preconceito. Mas a sua leitura sofisticada, presente em "Pequenos Burgueses", o "Rei da Vela" (peça inédita de Oswald de Andrade que ele estreou em 1967) e em "Roda Viva" era intangível pela aridez e superficialidade de militares golpistas e ditadores. O que chocou mesmo a ditadura e a malta que a apoiou foi ousadia, da nudez, da carnavalização de símbolos religiosos, da transpiração do prazer, do falar do sexo, do desejo e do amor sem fronteiras. No final dos anos 60, artistas foram agredidos, presos e sequestrados após encenação de Roda Viva. Zé Celso entra no radar da ditadura, sendo preso anos depois e barbaramente torturado.

Após a leitura do voto, Zé Celso foi chamado para fazer uso da palavra. Como é de praxe em todos os julgamentos de processos na Comissão de Anistia, o requerente da anistia, ou seu representante, é chamado a se manifestar logo após a leitura do voto. Veio Zé Celso à passarela! Sua palavra potente e seus braços compridos se espalharam por todos os espaços do teatro, ao longo da passarela, por entre os vãos das galerias. Ali Zé Celso rememorou com todos nós os momentos em que foi espancado por vários homens, nu e indefeso, em uma das sessões de tortura pelas quais passou. Nos contou que em um dos intervalos da pancadaria, levantou seu rosto e mirou os olhos dos torturadores, e nos olhos de um deles leu que ele "era gente também", pois exalava a vergonha e o constrangimento de estar ali.

Zé Celso exaltou o caráter simbólico, republicano, catártico, democrático daquele ato de anistia. Nos ensinou que nossa cultura é antropofágica, que as pessoas se comem e são comidas, em suas expressões, sonhos, artes e corpos, que a nossa diversidade não é a da separação e dos guetos. Nos ensinou, ali mesmo, com sua palavra e expressão corporal, e inclusive com seus cabelos brancos e esvoaçantes, que não precisamos ter vergonha dos nossos corpos, que somos eles, que podemos amar quem quiser, tocar e ser tocados. Após os votos unânimes do Conselho acompanhando o voto do relator, e entre eles o meu, veio o pedido de desculpas em nome do Estado brasileiro, as homenagens à história de luta e exuberância criativa e artística do Zé Celso. Foi como uma lufada forte de ar fresco, um banho de cachoeira límpida. Estávamos prontos para fazer parte da peça que foi encenada em seguida, "O Banquete".

Eu fui tocado pelas palavras, pela arte, pela presença, pelo talento, pelo teatro de Zé Celso. Eu aprendi, mais uma vez, que a arte é política e revolucionária, que ela nos coloca inteiros no olho do furacão das nossas vidas, da sociedade na qual vivemos. Zé Celso sempre assumiu isso, de peito aberto. Celebrar a sua obra é também celebrar a memória de que a brutalidade, o medo e o autoritarismo interditam o espaço da arte, confinando-a na clandestinidade, onde ela sempre resiste. Assim também a memória, diante das vagas negacionistas que há tempos assolam o Brasil.

Esta Caravana da Anistia no Teatro Oficina mostrou de modo contundente o caráter indispensável da memória das nossas lutas e das injustiças sofridas. É preciso saber ouvir, ver, reconhecer, aprender, com todos os sentidos, pensamento e coração. Lembrar para que não se repita, um pensamento, um regime, uma pulsão de morte, destruidora, que anula, mata, nega, sufoca. É preciso saber que a ditadura reprimiu, matou e violentou a arte, a ciência, as liberdades públicas, que ela não poupou classes sociais. Perseguiu pobres, abastados, pessoas brancas, negras, indígenas e aos seus movimentos e expressões políticas e culturais. Abateu-se sobre empresários, camponeses e operários. Seu sentido de morte e miséria se projetou para as camadas historicamente sofridas e vulneráveis do país, mas atropelava qualquer pessoa que se colocasse no seu caminho, viesse de onde viesse.

Viva a Comissão de Anistia! Que possa ela agora, no terceiro mandato de Lula, após 4 anos de um (des)governo amigo da ditadura, ter condições de retornar às suas políticas de memória e reparação. Um governo democrático deve investir em políticas de memória, justiça e reparação. Não é custo, é investimento. São essenciais, pedagógicas e redentoras dos nossos espíritos. Espíritos que hoje se elevam às alturas do incomparável Zé Celso Martinez Correa. Termino, levantando, olhando para o céu, erguendo meu braço para o alto e dizendo em alto e vibrante som: Zé Celso, presente! Agora e sempre!

José Carlos Moreira da Silva Filho é Professor na Escola de Direito da PUCRS. Foi Conselheiro e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça até 2016. É Conselheiro e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania desde janeiro de 2023.

Homem branco de terno caminha descalço em uma passarela, com os braços em posição de declamação, enquanto pessoas o observam
Zé Celso performa na sessão de sua anistia, em abril de 2010 - Maria José Coelho

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