Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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'Entrei em um carro em Goiás e acordei no hospital em São Paulo'

Depois de dias em coma, Rafael descobriu que o namorado havia morrido

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Em um canto muito especial da minha biblioteca, tenho uma pasta executiva bem velha cheia de memórias. Com certa frequência, visito alguns cartões postais que recebi da tia Aurora ou do meu pai quando era criança, e de amigos em intercâmbio na adolescência.

Sempre penso em um deles com muito carinho: o que o Rafael, um amigo de faculdade, enviou de uma cidade americana chamada Ocean City, em 2004.

Cartão Postal do Rafael, da cidade de Ocean City, nos Estados Unidos
Cartão Postal do Rafael, da cidade de Ocean City, nos Estados Unidos - Arquivo pessoal

Em 2002, fiz um curso de inglês em Alexandria, perto de Washington, e fui com alguns colegas acampar em Ocean City, no estado vizinho de Maryland. A cidade com parque de diversão na orla, como nos filmes, marcou a minha vida. E por isso nunca esqueci quando o Rafael foi trabalhar lá, em um programa de trabalho para universitários, e mandou um cartão postal da cidade para nossa turma de faculdade direcionado para a minha casa.

Sempre tive muito carinho por ele. Embora nossa amizade mais próxima tenha durado poucos anos, nós passamos um réveillon juntos em Arraial d’Ajuda e, no mesmo dia, frequentamos de delegacia a pronto-socorro, coisas que a gente guarda para sempre. Um dia, ele me levou para conhecer sua avó, que morava em uma das únicas casas residenciais remanescentes nas regiões mais conhecidas de Belo Horizonte, onde também morei a maior parte da minha vida adulta.

Alda Savassi me mostrou fotos antigas enquanto contava a história da padaria que seu pai havia fundado quando emigraram da Itália: a padaria Savassi, que deu nome à famosa Savassi.

Em 2006, foi a minha vez de fazer o programa de trabalho para universitários com a mesma empresa meio diferentona que o Rafa tinha me indicado. Depois que voltei, a rotina de fim de curso e vida de trabalhadores em cidades diferentes nos afastou. Mas continuamos nos falando pelas redes sociais e nem fazia muito tempo que eu havia achado uns vídeos de aniversários na minha casa e mandado para ele ver como éramos jovens.

Nos últimos tempos, eu acompanhava suas fotos e vídeos com seu namorado, Carlos Henrique Parreira, o Cazé, sempre cheios de alegria, mesmo em meio aos difíceis e isolados tempos de pandemia.

Até que um dia fui surpreendida pela notícia de que ele tinha sofrido um acidente de carro muito grave, no dia 20 de agosto de 2021. E que o Cazé, havia morrido, aos 24 anos. Mais de dois anos depois, descobri que soube da morte do seu amor antes do Rafael, que ficou quase um mês em coma.

Como acho que acontece com quase todo mundo, tenho aquela sensação de tristeza do que poderia ter sido e resgatado quando alguém de quem já fui muito próxima morre. "Éramos tão amigos, por que nos afastamos? Como será que ele estava nos últimos anos? Era feliz, como parecia nas fotos?".

Quando o Rafael fez um post no Instagram sobre o Cazé em setembro de 2021, poucos dias depois de acordar, fiquei muito emocionada e escrevi uma mensagem: "Rafa, meus mais profundos sentimentos pela sua perda. Não temos mais a proximidade de outros tempos, mas você é uma pessoa por quem guardo um carinho muito especial, de quem tenho as mais vivas lembranças, e saber que você sofre uma perda desse tamanho me dói muito".

Naquele momento, ele começava a viver seu luto. E hoje sei que muitas das mensagens que trocamos naquela época foi com ele ainda muito debilitado. Acompanhei sua trajetória e cada retorno seu para as normalidades da vida com muita alegria. O que aconteceu parece história de filme, mas, nos filmes, a gente não costuma ver o que vem depois do acordar.

Há algumas semanas, perguntei se o Rafa gostaria de contar sua história no Morte sem Tabu.

Não vai ficar tudo bem

"O Cazé foi amor à primeira vista e, depois que a gente ficou junto, nunca mais se largou. Logo que começamos a namorar, veio a pandemia, e nós realmente passávamos o dia inteiro grudados. Ele dizia que tinha três sonhos e acho que conseguimos realizar todos: morar na praia, que sua família o aceitasse e encontrar alguém que o amasse de verdade", diz Rafael.

Dois homens brancos de roupas pretas estão em rocha na Chapada dos Veadeiros
Rafael (de óculos) e Cazé na Chapada dos Veadeiros - Arquivo pessoal

O acidente de carro aconteceu no meio de uma viagem na Chapada dos Veadeiros, que era um sonho antigo do Rafael. "Não sei por que, mas sempre quis ir lá, ficar em um lugar específico, um chalé específico. No terceiro dia de viagem, a gente estava voltando de uma cachoeira e havia muita poeira no caminho. A guia havia nos alertado, então eu estava dirigindo muito devagar. Mas eu não sei o que aconteceu e nós caímos de uma ponte de seis metros de altura. O Cazé morreu, eu fiquei um mês desacordado e entubado em Brasília e três amigos que estavam com a gente tiveram ferimentos. Eu não me lembro de nada do acidente, nem mesmo de quando comecei a acordar".

Quando foi extubado, Rafael foi levado de UTI aérea para São Paulo, onde mora e onde mora sua irmã, Ana Luiza, a responsável por todas as tomadas de decisão sobre sua saúde desde o início.

"Quando atendi o telefone e fui informada do acidente, falaram que o Rafael estava em estado grave. E, quando perguntei do Cazé, um amigo deles disse que ‘parecia que ele tinha morrido’. Eu me agarrei ao "parecia", mas até hoje não sei se ele não tinha certeza ou se não teve coragem de me contar que ele tinha morrido na hora". Ana Savassi

Ana disse que a primeira decisão difícil foi sobre como contar para os pais sobre o que havia acontecido: "resolvi fazer isso apenas quando estivesse com meu irmão e pudesse dar informações precisas. É uma situação em que não existe o ‘vai ficar tudo bem’, porque já não estava tudo bem. O Cazé tinha morrido. E por mais que o Rafael seja o amor da minha vida, eu sabia que, se ele pudesse escolher, iria preferir ir junto com o Cazé. Eu tinha muita certeza de que ele ia melhorar, mas também tinha certeza de que iria sentir muita revolta".

Depois, ela teve que decidir entre manter o irmão em Brasília ou transferi-lo imediatamente para São Paulo. Sabendo da importância de que ele ficasse estável, Ana achou melhor mantê-lo em Brasília. Para que ele tivesse o maior suporte emocional possível, além de recursos hospitalares de excelência, Rafael iria para São Paulo assim que fosse extubado, ela decidiu.

Ana, Rafael e Glaycon, seu melhor amigo, em frente à UTI aérea
Ana, Rafael e Glaycon, seu melhor amigo, em frente à UTI aérea - Arquivo pessoal

"Fiquei com muita raiva de terem me deixado vivo"

Ana nunca tinha passado por nada parecido. E logo entrou em contato com a psicóloga do irmão para perguntar o que deveria fazer se ele acordasse. Mas, quando acordou, ele estava delirando muito e tinha lapsos de memória. A psicóloga orientou que Ana aguardasse, porque se, naquele momento, o Rafael ficasse sabendo que o Cazé tinha morrido, podia não aguentar e aumentar o risco sobre sua própria vida.

Fazia sentido. Rafael conta que simplesmente acreditou que o Cazé estava vivo. "Nunca perguntei se estava mesmo. Imaginei que ele estivesse em um hospital em Goiânia, perto da família. Se eu soubesse que ele estava morto, eu não teria aguentado, porque tive que fazer muita força para ficar vivo. Eram muitas dores físicas, muitas dores emocionais".

Ana diz que o irmão perguntava sobre o namorado para qualquer pessoa que aparecesse, mesmo que não fossem próximos. Só que, naquele momento, ele ainda estava delirando muito e tem poucas lembranças sobre isso. Ela diz que manter o Cazé vivo foi a coisa mais difícil que já fez em sua vida. Todo mundo que visitava o irmão recebia a instrução de que não deveria falar sobre o assunto, nem responder qualquer pergunta, como se apenas Ana realmente tivesse informações sobre o cunhado.

"No dia 10 de setembro, o Rafael pegou o celular e mandou uma mensagem para o Cazé, que só eu mantinha vivo, pedindo para que o namorado acordasse logo. Ele dizia que só confiava em mim. E eu era a única pessoa mentindo para ele." Ana Savassi

Rafael queria fugir do hospital. "Eu tenho que ir lá acordar o Cazezinho", dizia. Quando sua melhora começou a ser mais significativa, Ana teve sentimentos ambíguos. A felicidade de ver o irmão bem, com menores chances de sequelas, era acompanhada pela angústia de saber que o momento de matar o Cazé para ele estava chegando. O irmão estava cada vez mais consciente, fazendo mais perguntas, querendo saber detalhes e vendo menos sentido naquela narrativa.

Ana pensava muito em como o irmão tinha reagido quando o artista Paulo Gustavo morreu, poucos meses antes. "Todo mundo falava do Paulo Gustavo e o Rafael só pensava no Thales, como é que ia ser para o Thales".

Ela tinha recebido orientação da psicóloga de piorar a condição de saúde do Cazé conforme o irmão fosse melhorando, para preparar o terreno para a verdade de que ele havia morrido.

A esta altura, minha mãe já sabe que também usei essa estratégia com ela algumas vezes. Desde que teve AVCs hemorrágicos por possíveis picos de pressão de origem emocional, passei a internar pessoas gravemente, mesmo sabendo que elas já estavam mortas. Hoje, não funciona mais. Se eu disser que alguém está mal no hospital, minha mãe já pergunta se morreu. Por sorte, bastante gente segue viva.

No dia da alta da UTI, Ana contou toda a verdade: "Eu fui a pessoa que menti pra ele. Eu tinha que contar a verdade. Falei tudo: ‘vocês se machucaram muito no acidente e já no acidente o Cazezinho não sobreviveu’. Ele ficou desesperado, imediatamente quis saber da família do namorado. A verdade é que meu irmão recebeu a pior notícia da vida dele no pior momento da vida dele, porque sua situação de saúde ainda era extremamente frágil e apenas meses depois ele estava um pouco melhor emocionalmente".

Rafael ficou em choque. "Achei egoísmo as pessoas me manterem vivo no lugar de entenderem minha dor de ter que lidar com a perda do meu amor. Eu tava despedaçado e fiquei com muita raiva de terem me deixado viver".

Sua raiva não foi expressada de forma imediata, mas foi sentida aos poucos. Até que um dia, ele ficou nervoso, bateu na mesa e questionou por que a irmã não o tinha deixado morrer. "Você sabia que era isso que eu iria querer".

"Entrei em um carro em Goiás e acordei no hospital em São Paulo"

O luto das pessoas segue ritmos diferentes. Às vezes a gente acolhe imediatamente os enlutados, mas, quando eles mais precisam, um tempo depois, já estamos seguindo as nossas próprias vidas.

Quando soube da morte do namorado, Rafael recebeu muito acolhimento. Mas ele ainda estava tomando muitos remédios, muito fragilizado, saindo do ambiente da UTI em que esteve por vários dias. Ana diz que "ele ainda não estava totalmente presente. E, quando ficou realmente presente, estava muito sozinho". Aí sim foi o momento de lidar com a realidade da ausência e da impossibilidade de se despedir do amor da sua vida.

Recentemente, Rafael escreveu uma carta para o Cazé, em que diz que nunca foi bom de despedidas. "Então eu não sei me despedir de você. A forma que eu encontrei pra seguir é não me despedir, eu nunca vou te esquecer e sempre vou te amar e lembrar do seu canto e gargalhada ecoando pela casa. Porque se o vento te levou, o tempo é sua morada. Vou ressignificar minha saudade e vou te celebrar, como diz a música. Porque você sempre foi amor e alegria. Queria ter fé suficiente para aceitar, mas eu não consigo. Ouso afirmar que nesse caso, Deus cometeu um grande erro. Ainda que todo mundo soubesse que o Cazé era um ser especial, muito evoluído, que teria cumprido sua missão. (...) Eu não aceito o que aconteceu, mesmo porque, conscientemente nunca aconteceu. Eu lembro da gente entrando no carro e depois acordando no hospital de São Paulo".

Rafael, homem branco, veste roupa hospital azul e está em uma cadeira de rodas, abraçado por sua irmã, Ana, mulher branca. Ambos usam máscaras em razão da pandemia
Rafael e Ana no hospital em São Paulo - Arquivo pessoal

O Rafael disse que não sabe se teria conseguido participar dos eventos de sepultamento, missas, que aconteceram enquanto ele estava desacordado. "Tem filmado, mas eu não quero ver, nunca quis. Mas eu adoro falar do Cazé. O que me deixa mal é o que as pessoas fazem, que é fingir que ele não existe. A morte é um tabu, eu quero falar sobre isso".

Ana ouvia o irmão desabafar que não tinha com quem conversar sobre o que estava sentindo. Ele sentia falta de pessoas que tivessem passado por experiências parecidas. Então ela mandou uma mensagem para um amigo do Rafael, que encaminhou para o Thales Bretas. Eles não se conheciam, mas Thales se identificou com aquela perda e falaram algumas vezes. O viúvo do artista Paulo Gustavo "sempre falava sobre o tempo. Que às vezes ameniza e às vezes não, porque quanto mais tempo a gente fica longe da pessoa que ama, maior a saudade, mesmo que a dor diminua".

A coisa mais bonita que eu já vi

No próximo dia 18 de novembro, Cazé faria 27 anos. No aniversário de sua irmã gêmea Mineia, em 2021, a família recebeu Rafael e Ana em Goiânia. Era a primeira vez que Rafael ia ao cemitério e materializava a morte do namorado.

O pai do Cazé, Carlos, pediu a palavra para fazer um agradecimento e disse que Rafael era o responsável por terem aceitado o filho. Ele se sentia aliviado e feliz, porque a família teve a chance de mostrar ao Cazé, em vida, que reconhecia seu amor por outro homem. "No meio dessa tragédia, existem coisas bonitas. Foi a coisa mais bonita que eu já vi", lembra Ana.

O pai do Cazé disse ao Rafael que fosse feliz, honrando a vontade do filho. Mas, para ele, nem sempre é fácil processar o luto e ter a aceitação das pessoas: "É como se a gente tivesse que seguir um protocolo imaginário de como pode sofrer, por quanto tempo, quanto drama, quando ser forte, sem culpa. E se as pessoas acham que você está reagindo melhor do que esperavam, seu amor e sua história são postos em xeque: ‘será que aquele amor era real mesmo?’ E assim tiram sua legitimidade de sofrer".

Atualmente, Rafael está namorando Diovani Costa. Diovani conta que, quando se conheceram, percebeu como é forte a cicatriz que a morte do Cazé deixou. "O Rafael não queria ouvir que ia passar e eu deixei bem claro que eu estaria ali para escutar o que ele estivesse disposto a compartilhar, quando quisesse compartilhar. Sempre o deixei muito livre para expressar sua saudade e sua dor da forma como ele quisesse. Aos poucos ele foi conseguindo retomar sua vida, buscando novos projetos. E também ressignificar o amor. Eu admiro muito a sua coragem por se permitir amar de novo".

Ao fazer uma entrevista com a avó Alda sobre a padaria Savassi, Ana contou que ela evitou todos os capítulos tristes da história. A padaria, que inovou ao colocar mesas na rua e trazer gelato italiano, teve uma fase muito difícil em razão da posição da Itália na segunda Guerra Mundial. Pessoas realizaram protestos e destruíram o lugar, que era também onde Alda morava. Mas ela não queria falar sobre isso. Queria falar sobre alegria e coisas boas.

Rafael conta que só viu a avó triste duas vezes: no dia que o marido morreu e no dia seguinte. No terceiro, ela já queria estar bem de novo. "Acho que eu aprendi isso com ela", diz Rafael Savassi.

Não é porque algo não está doendo com a maior força que existe, nem porque o luto já passou, que as pessoas não podem ressignificar o amor, as pessoas, a vida. A gente pode até continuar achando que o melhor era ter encerrado um ciclo, mas, já que ele não se encerrou, seguir vivendo e amando da melhor forma que conseguirmos.

"Essa é uma história de amor e espero que, falando sobre ela, possa ajudar outras pessoas a ressignificarem suas dores também". Rafael Savassi

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