Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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'João de Deus': cinco anos da denúncia que abalou o país

Entrevista com Camila Appel sobre a coragem que salvou milhares de mulheres

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Eu só fui entender quem era o famoso médium brasileiro João Teixeira de Farias, proclamado João de Deus, quando ele se tornou um perseguido da polícia.

Até então era, para mim, um nome como tantos outros sobre os quais ouvimos falar e, a depender dos nossos interesses, sabemos mais ou menos.

Quando comecei a assistir a série documental da Globoplay "Em nome de Deus", logo no início da pandemia, levei um susto. Aquele homem era internacionalmente conhecido e tinha acesso aos mais variados espaços de poder no país. O chamado médium já tinha recebido elogios de Xuxa à Oprah Winfrey. Como tudo aquilo podia ter ficado escondido tanto tempo?

Três anos depois de "Em nome de Deus", a Globoplay disponibilizou a minissérie ficcional "João sem Deus: a queda de Abadiânia", série original do Canal Brasil, com atuações impressionantes dos protagonistas Marco Nanini como João, Bianca Comparato e Karine Teles. Criada por Patricia Corso, Leonardo Moreira e Giuliano Cedroni, "João sem Deus" acaba de ser indicada ao Premios Platino, que premia as melhores obras cinematográficas ibero-americanas do ano.

A concretude daquelas pessoas, mesmo que em personagens ficcionais, fez com que eu me conectasse melhor com a cegueira que o desespero pode promover. O desespero é um chamariz muito poderoso para mal-intencionados, especialmente quando envolvem a fé.

Camila Appel, fundadora do Morte sem Tabu e roteirista da série "Em nome Deus", é também a responsável pelas primeiras denúncias de abusos sexuais contra João Teixeira de Farias, em 2018. A minissérie "João sem Deus" a cita com o nome de "Carla" na ficção, embora transmita imagens reais em que Pedro Bial informa que ele e Camila Appel fizeram a apuração que levou à queda do médium.

Roupas brancas e mulheres abusadas

"A moça não ia vir aqui fazer a reportagem?", pergunta o braço-direito de João de Deus para "Carla" logo nos primeiros minutos da minissérie "João sem Deus". Pouco antes das denúncias começarem, a equipe do programa "Conversa com Bial" realmente se preparava para uma entrevista com João de Deus em Abadiânia.

Camila conta que a ida dos colegas para Abadiânia estava acertada. Já estavam até anotando os tamanhos das pessoas que participariam para providenciar as roupas brancas exigidas para entrar na Casa Dom Inácio de Loyola, local em que João realizava os atendimentos. "Eu não estava diretamente envolvida nessa matéria, mas resolvi perguntar a uma amiga que tinha morado em Abadiânia sobre o João. Ela me surpreendeu dizendo que conhecia mulheres que diziam ter sido abusadas por ele. Uma delas topou conversar comigo, anonimamente. Ela tinha escrito um diário 20 antes contando detalhes do abuso horrível que havia sofrido. A segunda pessoa que aceitou a conversa dizia ter sido abusada ainda naquele ano".

Ela percebia um padrão de condutas ao ouvir tantas mulheres relatando as mesmas coisas, os mesmos movimentos, as mesmas palavras, a mesma oferta de presentes, o mesmo lugar, o abuso repetido centenas de vezes contra diferentes mulheres.

Camila se perguntou quantas vidas aquele homem teria destruído. Ela ainda não sabia, mas estava prestes a ajudar a reconstruir muitas delas.

Camila conversava com as mulheres abusadas e cada uma indicava outra conhecida que houvera sofrido a mesma coisa. Enquanto isso, Bial se preparava para a entrevista. E ao mesmo tempo em que ela apresentaria sua denúncia, já bastante sólida, o entrevistador informaria que já tinha desistido de ir para Abadiânia: em um documentário, ouvira João dizer que só pedia uma coisa das pessoas que iam até lá: fé. "Isso eu não tinha para entregar".

"Foi o dia mais tenso da minha vida"

Camila sentia uma certa suspeita em relação a sua pesquisa, mesmo de colegas. A Globo mostrava preocupação com o tamanho da bomba que seria jogada sobre a reputação de alguém tão bem relacionado. "O dia da denúncia no Conversa com Bial foi o dia mais tenso da minha vida. Todo mundo estava aflito, meus amigos e minha família. Eu sabia que corria riscos se fosse à Abadiânia, haviam me contado que as pessoas tinham a minha foto caso eu aparecesse. Foi a confiança do Pedro Bial no meu trabalho que fez a gente seguir em frente".

O rosto de duas mulheres brancas, Camila e Zahira, está no plano principal da imagem, telas dos bastidores de uma produção de televisão aparecem ao fundo
Camila e Zahira nos baastidores do Conversa com Bial em 2018 - Arquivo pessoal

Para preparar o programa que revelaria os abusos, Camila queria a voz das mulheres abusadas, mas nenhuma delas se sentia confortável para se expor. A única pessoa que aceitou ter nome, rosto e vozes revelados foi a holandesa Zahira Mous, com quem Camila já conversava há algum tempo. "Nós tínhamos criado um elo de confiança, que hoje se transformou em amizade. Eu sabia que estaríamos juntas pra sempre, ligadas pelo vínculo que essa revelação nos fez ter. A Zahira sofreu muito, tentaram descredibilizar seus relatos de todas as formas, mentiram sobre ela. Mas ela se manteve firme".

O programa também entrevistou Amy Biank, uma mulher americana que havia sido assistente de João na Casa Dom Inácio e havia estado em Abadiânia 48 vezes. Ela não tinha sido pessoalmente abusada, mas conhecia diversos casos, e tinha testemunhado um ao entrar na sala do médium enquanto uma americana que ela havia levado à Abadiânia era vítima de João. Camila teve seu primeiro contato com Amy por um ativista de abuso em meios religiosos, Giulio Ferrari. Em princípio, Amy teve medo de se expor, mas entendeu que sua participação seria essencial para dar força aos testemunhos das mulheres abusadas. Ela acabou aceitando viajar de Chicago para São Paulo para gravar o programa ao lado de Zahira.

Em entrevista a Bial, mulheres acusam médium João de Deus de abuso sexual: 'Ele dizia que minha doença ia voltar' A holandesa Zahira Lieneke Mous foi a única mulher que aceitou mostrar o rosto no programa; brasileiras afirmaram ter medo e vergonha de se identificar - Globo

Codinome: Glauber

As cenas do programa "Conversa com Bial" de 07 de dezembro de 2018 são fielmente retratadas na minissérie "João sem Deus", que mescla elementos reais e ficcionais para contar a história da queda de Abadiânia.

Camila conta que o programa foi protegido por enorme sigilo da equipe e, por isso, no formulário de pauta que é encaminhado a todas as áreas envolvidas, constava o codinome "Glauber". O verdadeiro assunto do programa surpreendeu aqueles que imaginavam que se faria uma homenagem a Glauber Rocha. Mas ela havia pensado no nome exatamente por se lembrar do filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", dirigido pelo famoso cineasta em 1964.

Naquele dia 07 de dezembro, outras mulheres foram ouvidas, mas sem mostrar seus rostos e suas vozes.

"Logo que entrei ele trancou a porta". Ele pediu para eu ficar de costas". "Eu vou fazer uma limpeza energética em você". "Faça isso direito, menina, você não quer as coisas?".

"Não fui curada ou ajudada, fui abusada".

Fé, abuso e mais fé

No fim de outubro de 2023, o "Conversa com Bial" entrevistou Marina Person, que dirige a minissérie "João sem Deus", e a atriz Bianca Comparato, que interpreta Carmen, a principal assistente de João. É com sua personagem extremamente humana que entendemos que mesmo a mais inabalável das fés também está sujeita a ceder diante da realidade do abuso.

Duas mulheres brancas, Camila e Marina, vestem roupas verdes, um homem branco, Pedro Bial, veste camisa branca, e uma mulher branca, Bianca Comparato, veste vestido preto. Eles estão em pé e abraçados nos estúdios do Conversa com Bial
Camila Appel, Marina Person, Pedro Bial e Bianca Comparato na gravação do Conversa com Bial em outubro de 2023 para entrevista sobre a série "João sem Deus" - Arquivo pessoal

Mas isso não significa que a espiritualidade seja abandonada. Camila conta que ouviu diversos relatos de cura e de pessoas que, mesmo conscientes do abuso, mantinham o medo de retaliação espiritual se denunciassem os atos praticados por João contra elas.

Os demais elementos trazidos na minissérie demonstram que o medo ia além. João tinha muita influência sobre a cidade e muitas pessoas ali dependiam dele. A própria Amy Biank houvera contado que foi ameaçada ao tentar denunciar os abusos.

Mas o impacto da fé não pode ser minimizado e Carmen é a personagem responsável por dar veracidade a ele, mantendo-se fiel à Casa Dom Inácio, mesmo que não mais a João, contra todos os apelos da irmã e da filha.

"João sem Deus" faz perceber que os atos que aconteciam em salas fechadas e escondidas não manchavam a paz do ambiente acolhedor, recebedor de milhares de pessoas por dia.

Conforto espiritual é algo extremamente potente e pode dar uma sensação de bem-estar que torna as pessoas mais suscetíveis a acreditarem que dependem de um intermediário humano e abusivo para alcançá-lo.

As mulheres retratadas na minissérie são o resultado ficcional de elementos diversos de mulheres reais que foram abusadas por João. Parte importante da criação busca referências no trabalho de Camila Appel e da equipe do "Conversa com Bial" e seu núcleo de documentários na série "Em nome de Deus", além de outras produções e livros lançados posteriormente.

São as cenas do programa roteirizado por Camila e Bial e que revelou o caso ao Brasil que guiam um dos pontos centrais da história: o retorno de Cecília, a irmã de Carmen, à Abadiânia, depois de um longo período em Portugal. Ela sempre soube que havia sido abusada, mas não queria se expor. Agora encontrava força nas palavras de outras mulheres que haviam passado pela mesma coisa. "Muito parecido com o que te contei, né?", ela diz à amiga jornalista que a acompanha ao Brasil, obstinada por ajudá-la a desenterrar o passado e impedir que outras mulheres se tornassem novas vítimas.

Quando protegemos uma mulher, salvamos todas nós

Quando terminei de assistir a "Em nome de Deus", logo que foi lançada, em 2020, início da pandemia, escrevi um post recomendando a série no Facebook, com um pequeno bilhete para Camila:

"Espero que você tenha dimensão da mudança que promoveu na vida de tantas pessoas. Que promoveu no mundo. Acredito que você realmente tirou muitas mulheres da escuridão. De uma prisão para a qual o silêncio as empurrava, em direção à luz que encontramos quando descobrimos que não estamos sós; quando passamos por experiências devastadoras e, ao compartilhar com outras pessoas, percebemos que continuamos igualmente humanos, humanas.

Espero que a história que você contou ajude a tirar da sombra, também, outro de seus talentos: a morte sem tabu. Os abusos praticados por João Teixeira, a quem me recuso a chamar de Deus, são reflexo também da nossa incapacidade de aceitar a inevitabilidade de doenças que encerrarão as vidas de muitos de nós. O milagre divino, se tiver que acontecer, não depende de humano interposto. Muito menos de novos sofrimentos como compensação pela cura.

Acho que, quando protegemos uma mulher, salvamos todas nós. Obrigada por ter nos salvado".

Zahira dizia, naquele 7 de dezembro de 2018, que mostrava seu rosto e sua voz por ter esperança de inspirar outras mulheres. Existe uma cura que vem do sentimento de não estar sozinha. De descobrir que você não está sozinha.

Não está. Não estamos.

Série documental sobre a história e os crimes atribuídos a João de Deus - Mauricio Fidalgo/Globo

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