Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente Todas maternidade

O luto de uma mãe que perde o pai do seu filho

"O último sábado de julho amanhece quieto" foi finalista do Prêmio São Paulo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Entramos no restaurante para o café da manhã. Minha filha começa a se irritar, balança na cadeira, o choro começa. Fico sem graça pensando em todas as pessoas ali, convidadas de mesas importantes da Flip, enquanto eu e minha pequena família parecemos invasoras de um lugar que não nos pertence.

Percebendo meu desconforto, o pai sai com ela. Estou péssima, ainda não sei me comportar direito quando devo ser mãe e mais alguma coisa ao mesmo tempo, claro que devo ser mais mãe sempre acima de tudo em todo lugar.

Uma mulher na mesa da frente vê meu semblante desamparado e me acolhe, sei que ela é mãe também. Como é seu nome?, ela pergunta quando Beatriz retorna calma e comunicativa no colo do pai. "Sou Beatriz, como você chama?". "Silvana e esse aqui é o Dudu". "Dudu", Beatriz ri. Ela também tem uma Beatriz, a personagem de seu "O último sábado de julho amanhece quieto", finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2023, que eu já estava querendo ler.

Livro de capa azul chamado "O último sábado de julho amanhece quieto" sobre sua versão original em papel encadernado com uma caneta em cima e uma xícara próxima
Capa do livro de Silvana Tavano "O último sábado de julho amanhece quieto" - Reprodução Instagram

"Filha, ela é uma escritora muito importante, tem até Jabuti", "jabuti?", é.

Silvana Tavano me presenteia com o livro de sua Beatriz e uma dedicatória muito bonita. É o primeiro livro que leio inteiro depois da Flip.

Beatriz é uma mulher cujo filho na barriga nascerá sem o pai.

Muitas vezes em minha recente e única gravidez, disse ao pai da minha Beatriz que não saberia fazer isso sem ele. Sei que muita gente se torna mãe solo por tantos motivos diferentes, mas eu não acho que conseguiria. Admiro a mulher que gesta seu filho enlutada, admiro a força de se manter viva por dois corações.

Silvana mistura prosa e poesia de um jeito delicado, bonito, dolorosamente real. Procuro sinais de semelhança com o romance que estou escrevendo, um pai enlutado com sua filha de dois anos, mas não encontro. Existem muitas formas diferentes de se contar um luto.

Sinto o livro com uma proximidade que apenas é possível agora, depois que gestei a minha filha e senti a ansiedade muito peculiar de saber que em algum momento seria necessário que ela passasse a ser um indivíduo que não fazia mais parte de mim.

A cada lamento pela morte precoce do marido, acesso o medo de não ter o pai da minha filha ao meu lado. A minha Beatriz ainda nem chegou à fase mais difícil, não a de fraldas, leite, banho, choro, madrugadas e dias com horas intermináveis, mas a das decisões não compartilhadas. É por isso que eu não conseguiria, pela solidão das decisões.

Também dei meu livro para Silvana e tecemos conversas pelos nossos escritos, pelos diagnósticos e prognósticos de doenças graves, pelo que pode ou não fazer a esperança, pelo fim do tempo e o tempo do fim.

A história de "O último sábado de julho amanhece quieto" é a história de uma gestação a partir da sétima semana, quando muitas mulheres descobrem que estão grávidas, até a trigésima oitava, quando passam a escutar que pode ser a qualquer momento.

Um filho na barriga muda perspectivas de mundo, para Beatriz é motivo de muita felicidade e, de repente, a dor da ausência. Estar grávida é conflito com a amiga afastada por questões políticas, é acolhimento do pai carinhoso, e constrangimento em meio a outras mães na aula de hidroginástica, elas com pais para dar aos filhos.

É também uma possível reaproximação com a mãe distante em afeto, entendimento dentro do universo particular, não melhor nem pior, mas único, da maternidade. Minha mãe me disse a vida inteira: "você só vai entender quando for mãe", e por muito tempo eu respondi: "então não vou entender nunca, porque não serei". Mas fui.

"a palavra mãe

eu disse o que essa palavra é

o que a palavra mãe faz a gente sentir

o que todo mundo sente às vezes

quando diz mãe"

Beatriz também é assombrada pelas dúvidas daquilo que podia ter ou não sido se tivesse falado e feito, a dúvida de como a vida teria acontecido se ela tivesse decidido diferente. Certas escolhas são nossas e só nossas, mas nem sempre mudam o curso dos nossos rios, às vezes a única coisa que resta é nos perdoar.

A vida vai passando em luto, como se fosse só sobrevivência. E então, sem muito aviso, a solidão nos escapa, o corpo acorda e (re)nascemos um pouquinho. É tempo de Natal.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.