Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente Todas

A Flip não é para crianças

Crônica sobre a Festa Literária Internacional de Paraty

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Chegamos na quarta, fim de tarde. Logo minha filha assistiria ao primeiro show de sua curta e já tão grande existência. Por acaso, o de sua cantora preferida dos últimos dias. Ela canta que "procurando bem, todo mundo tem meleca (liberdade artística), só a bailarina que não tem". E é assim que Beatriz sabe que não tem problema ter suas perebas, obrigada Adriana Calcanhotto.

- Será que ela vai cantar a bailarina, mamãe?

- Difícil filha.

Mas cantou que louco é quem me diz que não é feliz e tudo bem.

A experiência de ir à Flip como autora é algo mágico. Com tantos livros e escritos no mundo, será que alguém vai ter tempo para encontrar os meus? Participaria de uma mesa sábado sobre finitude na literatura. Mas até lá, tinha muita coisa infinita pra viver, pessoas queridas de quem receberia abraços pela primeira vez. Abraçaria bastante de volta.

Tantas pessoas e palavras para procurar, como é difícil o mundo girando tão rápido e com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo.

Quero ouvir o Rodrigo Casarin, que fala sobre livros no Uol, lá na Casa Pagã. E passar na Casa Folha para compartilhar minha humilde ideia de que exista um espaço em que nos encontremos, autores e leitores do jornal. Quem sabe ano que vem? "Parece bom", o Paulo diz.

PARATY/RJ BRASIL, 26-11-2023: Mesa (Bras’lia Hoje) na Casa Folha com participacao de Celso Rocha de Barros e mediacao de Patricia Campos Mello durante a FLIP (festa literaria internacional de Paraty). (Foto: Zanone Fraissat/Folhapress, ILUSTRADA)***EXCLUSIVO**** - Folhapress

Saio entusiasmada pra reagrupar meu time. A cidade já dá sinais de que ficará às escuras, só que ninguém imagina quão escura. Estou preocupada de como organizar leituras sem luz, mas quem passa por mim lamenta a bateria do celular que acabará em breve.

Filha, vai com o papai, que tá chovendo e a mamãe não enxerga nada.

As pedras de Paraty amanhecem de novo, ora molhadas da chuva, ora molhadas da maré. De lágrimas também. Uma birra da minha filha que ainda está se ambientando, embora já tenha feito todo tipo de amizade, faz com que eu seja acolhida por outra mãe, Silvana Tavano. Beatriz é também, de certa forma, sua filha, personagem do livro que eu já queria ler e ela gentilmente me presenteia dedicado, "O último sábado de julho amanhece quieto" (ed. Autêntica Contemporânea).

Encontro despretensiosamente a Flipinha. Desculpe você, pessoa importante da programação principal que, ao ver minha filha, disse que "não trouxe os filhos, porque a Flip não é para crianças". Mas você está errada.

Pessoas na tenda da central flipinha em Paraty. À frente, criança com vestido amarelo segura livro
Beatriz na Flipinha - Arquivo pessoal

Volto à Casa Folha para que a Beatriz entenda o meu pertencimento no mundo, o seu pertencimento no meu mundo.

São muitas as pessoas que gostaria de ouvir neste dia. Recentemente, terminei o necessário livro "Era apenas um presente para o meu irmão: a Barbárie de Queimadas" (ed. Todavia). Chego à Casa Estante Virtual a tempo de falar com seu autor, Bruno Ribeiro, e ouvir Ronald Lincoln respondendo perguntas que me incomodam. Ele tem uma elegância que eu dificilmente teria quando perguntado sobre as escolhas que temos quando não temos mais nada. Escolhas?

A casa está cheia e lota ainda mais para ouvir Eliana Alves Cruz e Luciany Aparecida sobre perspectivas decoloniais na literatura. Não é ainda dessa vez que tieto Eliana, que acompanho há tempos, porque o bombeiro diz que interrompo a passagem. Vou deixar para fazer isso quando ela passeia despretensiosamente já no fim da Flip com o marido Estevão Ribeiro, criador da maravilhosa RêTinta. Desculpa gente, não me contive.

Ler é coisa para fazer com calma, mas estar na Flip é uma correria, só que não podendo correr de verdade nas pedras molhadas. Tenho que achar a Casa da Cultura, já passei por ali algumas vezes, mas cadê ela agora. Percebo pela multidão. Não é que ainda não sabia que a Rádio Novelo é um sucesso, mas as pessoas estão literalmente saindo pela janela. Ouvir Bia Guimarães e Paula Scarpin exaltarem o jornalismo feito com ciência me enche de um sentimento que tento sempre evitar: esperança.

Volto à casa que abriga meu livro na Flip e na sincronia dessincronizada da minha programação já toda molhada de chuva encontro Fernando Baldraia e Tainã Bispo. Finalmente a reunião com a minha autodenominada e querida equipe de edição. Entro para ouvir um dos títulos de mesa que elegi como mais bonitos: "Do Japão ao Sertão, tudo é centro e não há mais margem pra nada". Quero me apresentar ao Fred Di Giacomo, com quem já converso há algum tempo. E timidamente dizer para Xico Sá que escrevo na Folha também. Nada me prepara para ouvir de volta que acompanha o nosso Morte sem Tabu.

Três homens brancos e duas mulheres brancos estão sentados em bancos à frente de uma parede com quadros. Um deles veste camisa branca e calça preta e fala ao microfone
Fred Di Giacomo, Karina Buhr, Xico Sá, Ana Paula Moreira e Caê Guimarães na mesa "Do Japão ao Sertão, tudo é centro e não há mais margem pra nada" na Casa Pagã - Arquivo pessoal

A hora de falar em uma mesa na maior feira literária do país se aproxima, mas ainda tenho pessoas para escutar. Mulheres que escreveram livros sobre os quais escrevi por aqui. Livros sobre morrer e viver apesar da morte. Vanessa Passos me apresenta para Tiago Velasco, que escreveu o que ele chama de coisa de nome "Romance" (Opera Editorial), fruto de uma tese de doutorado, como o meu livro. Que bonito transformar pesquisa em literatura.

A Casa Paratodos é minha última morada antes de seguir para a minha própria Casa Pagã. Minha filha fez forte amizade com Rute Simões Ribeiro e Mariana Paz, e disse que suas amigas a estavam esperando. Mas o sono de criança bateu e ela não conseguiu aparecer. Prometi ir no seu lugar.

É verdade que já iria de todo modo. Estava com "A Breve História da Menina Eterna" (ed. Nós) na mão um dia antes, quando Rute chegou por coincidência e calorosamente me recebeu. Era também a mesa da querida Mariana Carrara, de quem desejava roubar o título "é sempre a hora da nossa morte amém" (ed. Nós). Porque pode mesmo ser sempre a hora da nossa morte. Amém.

"A vida manda seus sinais, basta ter o coração aberto e ser amalucado o suficiente para entender", diz Jorge Amado em Quincas Berro d’Água. Com o perdão de Jorge, diria que a morte também manda seus sinais", inicia Renan Sukevicius, do incrível podcast Finitude, em nossa "Poética da Finitude: A morte na literatura".

Quanta gente para nos ouvir falar sobre morrer nesse sábado à tarde. Minha Beatriz está na primeira fila, no colo do pai. Precisa ouvir comportadamente a mamãe para ter direito ao sorvete que combinamos.

Morte, assim como a Flip, também é para crianças.

Renan nos provoca a falar sobre nossos escritos. Decio Zylbersztajn esgota seus exemplares de "O arquivo dos mortos" (ed. Reformatório) com uma história incrível sobre obituários, esse tema tão sensível que, lembro, vem sendo objeto de críticas aqui na Folha. Daniele Tavares diz que o que não poderia faltar no seu obituário era o registro de que morreu duas vezes: a primeira, quando precisou se despedir da sua filha, história que conta em seu livro "parte de mim" (ed. Quelônio).

Não há quem não precise de um momento para respirar quando se lembra de que filhos morrem. Até crianças morrem.

Renata Machado lê um dos contos de "Todas as coisas que já não são minhas" (ed. Mireveja). Eu, que tenho grande dificuldade de descrever objetos, fico emocionada com quanto significado encontro em seu pijama de ficar triste.

Três mulheres brancas e dois homens brancos posam para a foto com seus livros recentes
Cynthia Araújo, Renan Sukevicius, Daniele Tavares, Decio Zylbersztajn e Renata Machado na Casa Pagã na Flip - Arquivo pessoal

Renan diz que gosta da vulnerabilidade que mostro no meu livro. Escrevi "a vida afinal: conversas difíceis demais para se ter em voz alta" (ed. Paraquedas) para chegar a pessoas comuns, porque acredito que todos nós passamos ou passaremos por aquilo que narro, em pessoa de pesquisadora, em primeira pessoa. Mas depois de um doutorado, alguns livros e a escrita tão frequente sobre morte por aqui, o que posso dizer é que continuo mesmo é sendo humana, com todos os medos e fragilidades que o nosso material finito nos impõe.

Daniele se aproxima ao fim da mesa. Fala sobre o meu maternar, que vê ali na sua frente. Pensa no seu, de tantos anos. Como é bom ter visto minha filha crescer.

Não há nada que eu deseje mais. A oportunidade de ver minha Beatriz se tornar quem ela tiver que se tornar. Pensar sobre morrer é, no fim das contas, a forma mais forte que temos de pensar sobre viver.

Depois do sorvete combinado, sento no chão da Livraria da Travessa. Agora o tempo é todo seu.

- Lê pra mim mamãe.

Outras crianças se aproximam com seus livros. Lê esse pra mim tia? Procuro o olhar de aceitação da minha filha e começo a alterar raposas e escovas de dente de bichos de pelúcia que perderam os próprios bichos de pelúcia para não deixar nenhuma preferência de fora. Dedinhos pequenos apontam novas histórias. Ainda mais bonito que escrever é ver novos leitores nascendo.

O domingo amanhece mais quieto, mas ainda teremos Conceição Evaristo para aplaudir. Antes da minha despedida, passo na Casa Gueto para tentar conseguir "Quase Verão" (ed. Diadorim) do Renan, mas não dá tempo. Alguém me entrega um exemplar da Antologia da casa, feita pela Editora Patuá. E já que estamos por aqui mesmo, deixo vocês com o conto que ganhou morada ali. A Flip, o mundo, a vida e até a morte são também das crianças.

Essa minha dor menor

Hoje a Maria Rita ligou de novo. Falou com a mamãe. Não sei o que tanto falam. Não quis atender. Maria Rita é criança como eu, não tem como me ajudar. Aposto que só quer brincar.

Eu sinto que ninguém dá muita bola pra mim. Falam de quem perde filho, a mãe e o pai, falam até de quem perde o gato. Eu também fiquei bem triste quando a Maionese morreu, mas é que agora é diferente. Eu não perdi a Rosa Maria. Perdi a Rosa, um pedaço da minha mãe, um pedaço do meu pai, um pedação da vovó, todos os amigos da minha irmã. É muita gente pra perder.

Mas ninguém olha pra mim, nem eu deveria olhar, porque parece que a minha dor é bem menor do que a da mamãe e do papai, eles sim têm uma dor imensa que não posso entender.

Mesmo assim tá doendo tanto. Tento não chorar na frente deles, porque me disseram que preciso ser forte. E que eu vou melhorar depois, mas eles não vão melhorar nunca. E aí me pergunto se pra sempre vai sobrar só um pedaço de cada um, nenhum inteiro.

Estranho esse mundo dos adultos. Eu sou criança, então não mereço abraços de "meus sentimentos", "sinto muito". Podiam só perguntar se preciso conversar. E eu nem quero conversar, mas queria que perguntassem.

Eles me chamam pra brincar, dar uma volta, dizem que vai fazer o tempo passar. Mas eu não quero que o tempo passe. Eu queria minha irmã de volta, mas entendi que não dá. Nunca me explicaram direito, até hoje só falam aquela bobagem de que virou estrelinha, mas entendi.

E olha que ela andava bem chata. A gente ajeitava as bonecas, mas na hora de brincar ela dizia que tava cansada. E eu ficava sozinha. Quando pedia pra ela ir ao cinema comigo, ela não queria, mas era só o João ligar que ela ia com ele. Eu ficava triste.

Sozinha e triste. Que nem eu tô agora, mas é muito pior. Parece que engoli uma bola de boliche que entalou na minha garganta. Antes, mesmo que a Rosa não me quisesse por perto, logo ficava tudo bem. E parece que nunca mais vai ficar tudo bem.

Tem hora que até me esqueço. Eu começo a ler um livro e não me lembro que a Rosa morreu. Então alguém tem irmã ou morre na história, e me lembro. Preferia não esquecer nunca, porque quando me lembro de novo é como se a bola de boliche aumentasse um pouco mais.

Fico me perguntando se vai ser pra sempre assim. Será que nunca mais a mamãe vai sorrir? Ela é uma pessoa colorida, eu tenho vergonha quando ela usa verde, mas agora tô com saudade, porque tem três dias que ela só usa pijamas cor de nada. E teve o primeiro dia em que ela usou uma roupa toda preta que eu nunca tinha visto e colocou uns óculos na cara. Nem parecia ela.

Eu acho até que tô com mais saudade da mamãe do que da Rosa. E também estou com um pouco de raiva. Meu pai sempre foi assim, sem muita conversa, então não esperava coisa diferente. Mas a minha mãe fala até com a Maria Rita e comigo não.

- Vem jantar meu amor! Fiz o macarrão que você gosta.

- Não quero comer.

- Então vem só me fazer companhia.

A cor de nada deu lugar a uma blusa feia, mas rosa clarinho.

- Tá bonita, mãe.

- Obrigada, minha flor.

- Sua flor é a Rosa.

Droga. Foi sem querer. Desculpa, mamãe. Não chora. Eu tô aqui. Eu ainda tô aqui. Ela não chora. Passa a mão no meu cabelo e diz que sabe que estou triste. E que vai passar.

- Mas você vai ser triste pra sempre, né?

- De onde você tirou isso?

- Ouvi você falar com o Tio Carlos. E com a dona Sônia.

- Filha, às vezes a gente fala pras pessoas o que elas esperam ouvir. Eu estou muito cansada, sabe? Muito cansada. E triste sim, muito triste. Mas não, não vou ficar pra sempre assim. Nós vamos voltar a ser felizes, mesmo que não seja mais aquela felicidade que a gente tinha antes, com a Rosa. Vai ser diferente, mas eu prometo que vai ser feliz também.

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