Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Natal

Quando um Papai Noel morre

Meu Papai Noel trabalhou por 35 anos, até seu coração parar de repente

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Leitora escreve sobre

Tatiana lazzarotto

Dentro do Uber, a comentarista de rádio anuncia um congresso mundial de papais noéis na Dinamarca. É 22 de dezembro e absolutamente tudo nessa época remete ao meu pai. Nascido no interior de Caxias do Sul (RS) nos anos 1950, aos 18 ele se mudou para a Baixada Fluminense, com a proposta de trabalhar em supermercado. Acabou virando gerente, casou-se com a minha mãe, pernambucana, tiveram meu irmão e, com medo da violência, rumaram para o Oeste de Santa Catarina, onde eu e minha irmã nascemos. De gerente do extinto Rosal virou muambeiro. Nossa sala vivia cheia de bugigangas, era das sacolas de nylon listradas que saíam todos os brinquedos da nossa pequena cidade.

Costumávamos dizer que primeiro ele foi buscar presentes para depois se vestir de entregador. Desde criança eu sabia que era meu pai por trás da barba mequetrefe nas festas da Igreja. Em 1999, o bico virou coisa séria. Já com a barba comprida, mas preta, caminhava duas quadras até um salão de beleza: várias sessões de descoloração até chegar ao tom branquinho. Começava aí uma rotina alucinante: 45 dias viajando, dois, quatro, oito eventos em um dia. Com o passar dos anos, a penugem ficou mais rala, as pernas, mais pesadas. O discurso se tornou mais eloquente, embora a voz falhasse vez ou outra pelo cansaço. Meu pai, o Papai Noel do Brasil –marca patenteada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi)– partiu no dia 27 de novembro de 2018, quase um mês antes do Natal.

mulher morena abraça seu pai, vestido de papai Noel, na frente de uma árvore de Natal
Tatiana lazzarotto e seu pai - Arquivo Pessoal

De herança, ganhei histórias. As bodas de prata com a minha mãe foram celebradas num helicóptero, de onde ele sobrevoava o Sul do Brasil e fazia ho-ho-ho. Vestidos de gala, eu e meus dois irmãos aguardávamos lá embaixo, junto de 10 mil convidados. Nessa época, eu já cursava jornalismo, e os colegas me conheciam como a filha do Papai Noel.

Os professores sabiam que eu não poderia pegar exame ou milhares de cartinhas de crianças ficariam sem resposta. Pelo CEP que ganhou dos Correios, mais de 1,5 milhão de cartas foram endereçadas à casa que meu pai construiu como palco de seus imaginários. Respondi mesmo milhares de Jennifers, Lucas, Jéssicas –e também acompanhei nos envelopes a história do Brasil nos anos 1990 e 2000: Bebetos e Romários, Jades e Lattifas. Futebol e novela sempre batizaram bebês, que quando aprendiam a escrever confiavam sonhos e endereços a um desconhecido –muito antes da LGPD.

Na varanda do andar de cima, meu pai enxergava horizontes. Ensaiava seus discursos (foi cinco vezes palestrante do TEDx) e chegou a falar para mais de 30 mil pessoas sobre o verdadeiro sentido do Natal. Da pequenez de onde vivia, das limitações de toda a sorte que enfrentava, meu pai se agigantava. E de cima, via-se capaz de dar conta do caminho. Enxergava-o, não com nitidez, mas com olhos de possibilidade. Fundava sua coragem numa ideia mirabolante e tocava o rumo do barco para dar cabo da proeza. Meu pai sempre viu muita mágica nos inícios. Arriscava-se ainda sem saber de antemão como fazer, o próximo passo, a próxima parada. Meu pai nunca deixou de começar uma viagem.

Talvez porque vestido do seu melhor personagem, ele entendeu que muito é entendido no meio do caminho. E ele é feito de imensidão. Essa foi a maior lição que meu pai me deixou e é com ela que eu respondo à pergunta-título. A orfandade também se aprende no meio do caminho.

Por acaso, me deparo com a notícia de um recorde nacional: um Papai Noel com maior tempo de atividade no país: 38 anos. O meu trabalhou por 35, até seu coração parar de repente. Num delírio, abro o link e mostro ao meu pai, que responde com deboche: "tem barba falsa, não presta".

*

Tatiana Lazzarotto é escritora, jornalista e autora de "Quando as árvores morrem" (2022), livro em que ficcionaliza a partida de um pai que também era o Papai Noel, pelo olhar da filha órfã.

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