Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Desmame: mais uma das dores da maternidade

Minha filha estava mais preparada para o fim da amamentação do que eu

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Olho os cabelos escuros no espelho.

Com o tempo fui me acostumando, mas ainda estranho quando presto muita atenção. Nunca tinham sido dessa cor, mesmo antes de começar a fazer luzes uma vez ao ano.

Na gravidez, meu marido disse que parecia que eu estava pintando o cabelo de preto. Só mais uma entre tantas mudanças. Mas saber que em breve voltarei a ter os cabelos que reconheço como meus tem um significado diferente agora.

Como se eu pudesse tingir o vazio que sinto nos últimos onze dias, quando iniciamos o desmame da minha filha de dois anos e meio. Quem mandou esperar tanto, ouço dizerem.

Se dependesse do que dizem, não teria concluído o primeiro ano. Quando Beatriz tinha dez meses, uma dor forte no ombro me fez procurar um pronto-socorro. A consulta não durou 15 minutos, você vai ter que parar de amamentar, deve estar sobrecarregando o lado direito. Entrei com dor e saí com raiva.

Dois meses depois, falei com a pediatra que meu colesterol estava muito alto e que, antes de engravidar, eu tomava remédio, porque as tentativas de resolver com alimentação e dieta nunca funcionaram. Ela deu uma olhada rápida no Google sobre o uso das estatinas e sentenciou que era melhor interromper a amamentação.

Meu clínico foi um pouco mais tolerante, disse pra eu iniciar o processo e me dar prazo de uns quatro meses pra terminar.

Estávamos indo para o Oriente Médio e eu me perguntava se teríamos problemas por lá. Não tivemos. Entendi como um sinal de que ainda não era o momento de parar. Além disso, a rotina me atropelou. Para as mães que amamentam, muita coisa se resolve no peito. Com a Beatriz já mais consciente e começando a falar, tentei combinar a redução do mamá, no máximo quatro vezes ao dia, quatro é pouco mamãe, vamos deixar cinco. A pessoa que me ajudava com ela tinha questões de saúde vez ou outra e não consegui manter o plano. Decidi então combinar que pararíamos quando ela fizesse dois anos, mas uma viagem longa com todos os avós programada para agosto me fez adiar. Ela começaria a escola logo que voltássemos, todos me disseram que o processo do desmame seria natural quando passássemos algum tempo longe uma da outra.

Não foi. Resolvi fazer um novo combinado, vamos parar no lançamento do livro da mamãe no Rio em novembro? Vamos. Era a quarta e última cidade diferente com lançamentos. Ao fim de cada um comemorávamos com o mamá de encerramento que ela aguardava pacientemente, depois de longas horas de dedicatórias e conversas que não a incluíam. Algumas semanas antes, Beatriz me perguntou se poderíamos mudar aquele combinado pro natal. Eu disse que sim, mas que não poderíamos adiar mais, a mamãe precisa voltar a tomar o remedinho dela, tá bom, mamãe.

Não criei qualquer expectativa de que daria certo. Sabia que, se fosse difícil pra ela, eu não insistiria. Não conseguiria insistir. A adulta da relação sou eu, tomar uma decisão que impõe sofrimento a minha filha era pesado demais. Todo mundo tinha certeza de que ela não ia aguentar.

No dia 25 de dezembro, ela acordou e pediu para mamar. Eu disse, sem qualquer convicção, que era natal e o mamá tinha acabado. Falei que ela não mamaria mais durante o dia, mas que podia mamar uma única vez antes de dormir. Tá bom, mamãe.

Ela tem cumprido nosso combinado. Estava muito mais preparada para ele do que eu. Não é que eu não tivesse ouvido que o fim da amamentação poderia ser um luto para mãe, mas é que acontece tanta coisa até chegar o momento de um desmame "tardio", que ninguém imagina que vai chegar tão longe. Pelo menos eu não imaginei.

Primeiro te juram que, só com muita sorte, você vai conseguir manter a criança exclusivamente no peito por seis meses. Sorte, resiliência, rede de apoio, ajuda profissional, laser, creme, estudo. Decidi que só iria me preocupar com o assunto se tivesse dificuldade pra amamentar depois do nascimento.

Depois tem o retorno ao trabalho, a necessidade de que a criança fique com outras pessoas, a introdução alimentar, a possível redução do leite, o desgaste natural da relação. Ela mesma vai começar a rejeitar, você vai ver. Mas o vínculo com a minha filha foi ficando cada vez mais forte e eu sempre soube que muito disso vinha da amamentação e do fato de que o peito era um porto-seguro para ela.

Não consigo imaginar a tristeza que sentiria, e sei que muitas pessoas sentem, se não tivesse conseguido amamentar a minha filha. Sei que tive um imenso privilégio, reconheço isso. Só que, ainda antes de ela nascer, entendi que não amamentar era uma possibilidade muito real e, de certa forma, a aceitei.

Mas ninguém me falou nada sobre o final desse ciclo. Procuro informações a respeito e não encontro muita coisa. Talvez porque pese o privilégio de amamentar, de ter leite, o bebê aceitar, ter tempo, energia, um trabalho que permita, todo uma cadeia de acontecimentos necessários pra que alguém se sinta em condições de continuar cedendo o peito pra criança se alimentar e se aconchegar.

Nem por isso deixa de doer. Sinto que nada me preparou para o vazio que eu sinto agora, sabendo que estamos encerrando o ciclo da vida do meu não mais bebê em que eu sou a única pessoa no mundo todo que pode lhe oferecer o acolhimento que ela sente com o leite da sua mãe.

No início, existe uma certa perplexidade. Ao menos era assim para mim, ao pensar que o que mantinha a minha filha viva era produzido exclusivamente pelo meu corpo. Depois que a criança começa a se alimentar, o vínculo muda, e, mesmo que a OMS recomende a amamentação até pelo menos dois anos, a maioria das mães que conheço só ambicionava amamentar nos seis primeiros meses. Eu também.

Mas agora que estamos aqui, é como se um buraco tivesse se aberto no mesmo peito de onde ainda sai leite. Beatriz alterna entre rejeitar a proximidade do colo que não a alimenta mais e querer o colo apesar disso. Dou a ela o tempo e o espaço de que precisa, mas não imaginei que sentiria tanto esse fim.

Olho para o seu pai e digo que preciso de carinho, porque não sei explicar o sofrimento que sinto, será que tenho direito de sentir depois de tanta sorte? Tento racionalizar, colocar as coisas em perspectiva, admirar o fato de que minha filha está crescendo saudável, de que fizemos um bom trabalho, mas às vezes é necessário aceitar que viver dói e o que nos resta é esperar passar.

Eu sei que vai passar. Não sei se iluminar os cabelos ajudará no processo. Talvez até piore o meu luto. Mas, ainda assim, acho que será bom para lembrar que algumas coisas precisam encontrar seu lugar de volta nesse mundo que ainda me é muito novo, o da maternidade.

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