Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Quando a cura da manchete não chega à vida real

O impacto social de inverdades sobre tratamentos contra o câncer

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Algumas horas antes do anúncio oficial sobre a morte da jornalista Glória Maria, há pouco mais de um ano, eu havia recebido a informação de que sua vida estava chegando ao fim. Quando ela adoeceu, minha mãe ficou muito triste e, depois, quando chegou o anúncio de cura, ela me perguntou o que eu achava. Respondi que era difícil. O prognóstico de pacientes com câncer metastático é geralmente ruim (incurável e com baixa sobrevida global na maioria dos casos) e, tecnicamente, a informação de que a artista teria sido curada com imunoterapia não fazia muito sentido.

"Poxa, bem que você disse", minha mãe me escreveu logo que soube da notícia - pela televisão, não por mim.

As notícias de que artistas se curaram de doenças incuráveis não são raras. Muitas vezes não se fala em cura, mas utilizam-se outros termos que fazem as pessoas acreditarem que a doença foi superada e não representa mais risco à vida.

Glória Maria
Nome histórico do jornalismo da Globo, Glória Maria morreu no dia 2 de fevereiro de 2023 - Divulgação/TV Globo

Recentemente, escrevi um artigo sobre um paciente com câncer há treze anos que teve remissão completa após um tratamento com CAR-T Cell. Na época, comentei que mesmo que ninguém acompanhe o que vem depois, comemoram-se casos assim como se estivéssemos, enfim, perto da sonhada cura. Não apenas perto da sonhada cura para aquele paciente que, geralmente, já é considerado fora da curva, mas da cura geral e irrestrita de todos os cânceres.

Infelizmente, remissão não é cura e significa apenas que, naquele exato momento, não há sinais de câncer detectados por exames naquela pessoa. Pode ser o início de um processo de cura? Pode. Assim como pode não significar nada semanas ou meses depois.

Tenho refletido bastante sobre a responsabilidade de pessoas públicas na divulgação de notícias falsas sobre seus tratamentos de saúde. Muitas vezes, como acontece na maioria dos casos de pacientes com cânceres avançados, a própria pessoa não sabe o seu prognóstico. Assim, ela não estaria mentindo, estaria apenas reproduzindo o que entendeu - frequentemente em razão da má comunicação médica.

Mas e quando ela entende e deliberadamente escolhe dizer que está curada, talvez porque acredite ter mais paz assim, talvez para não ver os seus obituários publicados antes do tempo? Como fã, não me sentiria traída se descobrisse que alguém que admirava muito mentiu sobre sua saúde. Não vejo como exigir de quem quer que seja o compartilhamento de informações tão sensíveis. Mas como pesquisadora do assunto, é impossível não pensar que a divulgação da cura de doenças incuráveis contribui para as expectativas já equivocadas das pessoas sobre os limites da medicina.

Outra reflexão que faço é de que para que uma pessoa pública sustente a cura de uma doença incurável com determinado tratamento, várias outras pessoas mentem junto com ela: familiares, jornalistas, seus médicos. O possível impacto social dessas notícias é imenso, mesmo porque elas nunca mais são corrigidas. Ninguém volta para dizer que uma pessoa que havia afirmado cura na verdade nunca se curou e que sua morte aconteceu em razão da evolução natural de uma doença que tinha mau prognóstico. O que fica é apenas a ideia de que, se aquela pessoa se curou, então eu posso me curar também.

Os cânceres diagnosticados em estágio inicial (diagnóstico precoce) são potencialmente curáveis na maioria dos casos. Mas, infelizmente, os cânceres mais prevalentes são diagnosticados em estágio avançado.

Em 2016, o médico aposentado do Imperial College School of Medicine, Peter Wise, revisou a literatura sobre as drogas oncológicas para pacientes com câncer metastático e publicou o artigo "Cancer drugs, survival, and ethics" no BMJ, uma das revistas médicas mais respeitadas do mundo. Nele, Wise demonstrou a baixíssima efetividade das drogas no tratamento dos cânceres avançados (sobrevida global de até três meses), incluindo os tumores mais prevalentes no mundo e as drogas aprovadas pelas principais agências até 2014.

Em 2020, o onco-hematologista americano Vinay Prasad publicou uma obra paradigmática sobre os estudos das novas drogas oncológicas. Em Mallignant, Prasad demonstra que o desfecho comumente apresentado por oncologistas para justificar a prescrição de medicamentos para pacientes com câncer avançado, a chamada sobrevida livre de progressão, não tem indicado relação com o aumento da sobrevida global. Em outras palavras, o paciente não vai viver mais em razão do aumento da sobrevida livre de progressão.

Isso não quer dizer que uma parte - significativa em casos de câncer de mama, por exemplo - não viverá mais tempo que o esperado. Algumas pessoas viverão muito tempo (mais do que cinco anos), com ou sem tratamento, sem que seja possível estabelecer relação de causalidade entre a sobrevida acima da expectativa e eventual tratamento.

E não há problema algum em acreditar que você viverá muito mais do que a maioria. O problema é acreditar que isso decorrerá de um tratamento cujo aumento de sobrevida global esperado é de dois ou três meses, e seguir fazendo esse tratamento, apenas porque espera dele o que ele não pode oferecer.

Já narrei aqui no Morte sem Tabu algumas experiências que vivi em 2018, quando entrevistei pacientes com cânceres avançados, durante o doutorado. Um dos casos mais marcantes foi o de uma paciente alemã com oitenta e tantos anos que reclamava muito de uma dor no peito, mas que, informada de que não faria quimioterapia naquele dia, disse que estava ótima. Ela achava que não podia deixar de fazer o tratamento, porque acreditava que era ele que o mantinha viva.

Essa expectativa equivocada faz com que os pacientes levem os tratamentos às últimas consequências. Mesmo uma dor física importante pode ser minimizada pelo medo de serem impedidos de continuar e perderem a suposta chance da cura ou de muitos anos ou décadas de vida a mais. É claro que também existem pacientes que se submeteriam a tratamentos mesmo diante da certeza – científica – de que não poderiam curar a sua doença, mas poderiam aumentar o seu tempo de vida, ainda que apenas por algumas semanas ou meses. Assim como existem pessoas que aceitariam medicamentos que não prometem nem mesmo isso, só pela necessidade de tentar alguma coisa – qualquer coisa.

Por outro lado, estudos demonstram que muitos pacientes com câncer avançado aceitariam tratamentos tóxicos por até mesmo 1% de chance de cura, mas não aceitariam o mesmo tratamento por um aumento substancial na expectativa de vida sem a cura. E quanto falamos que não há prognóstico de cura, estamos falando que esses tratamentos não oferecem essa chance, mesmo que de 1%.

Precisamos reconhecer que pacientes com doenças que ameaçam a vida precisam de médicos com excelentes habilidades de comunicação. A boa comunicação é tão importante quanto as habilidades de diagnóstico e prognóstico. Ela é parte da boa formação técnica de um profissional, e não um complemento a ela.

Mais do que as tecnologias disponíveis e aquilo que bons profissionais fazem das tecnologias disponíveis, é o entendimento do que está acontecendo que determina o curso do restante da vida dos pacientes com doenças graves e incuráveis. Pessoas igualmente doentes e de interesses parecidos tomarão decisões diferentes diante dos mesmos recursos, a depender da sua compreensão sobre o que esses recursos podem ou não fazer por elas. E, por isso, a relação médico-paciente é determinante para o entendimento de pacientes sobre sua saúde e o impacto na sua ideia de futuro.

Mas ainda antes da entrada em um consultório médico, estamos inseridos em um contexto social que nos faz ter mais ou menos confiança no que a medicina pode nos oferecer. Quando a Glória Maria morreu, discutiu-se se era ético ou não divulgar a sua idade. Comecei a me perguntar por que temos tanta curiosidade sobre de que morreram e que idade tinham pessoas que muitas vezes nem conhecemos e às vezes de quem nem gostamos. Penso que pode ser uma forma de nos afastar da realidade de que morremos também, uma forma de nos convencer de que aquilo que aconteceu não aconteceria conosco, seja porque somos mais novos ou porque não estamos com aquela doença ou mesmo porque não frequentamos aquela estrada.

Da mesma forma que queremos nos afastar do que nos desagrada, queremos nos aproximar do que nos interessa: a cada vez que alguém noticia que está curado de uma doença, mesmo que seja incurável, ou são divulgados resultados promissores de novas tecnologias médicas, mesmo que não se confirmem, nós nos imaginamos sendo beneficiados. Se ela se curou, eu também posso ser curada.

Além do efeito cruel que a informação tem sobre pessoas que se reconciliaram com sua finitude e muitas vezes interromperam tratamentos que não faziam mais sentido - mas voltam a ser pressionadas para tentar aquilo que supostamente curou outras pessoas -, existe um outro efeito social grave, especialmente quando falamos de artistas com alto poder aquisitivo: pessoas com doenças incuráveis começam a acreditar que não é que sua doença é incurável, mas que o tratamento de que precisariam não é disponível pelo plano de saúde ou SUS.

Muitas vezes, a cura não existe, nem aqui, nem em lugar algum do mundo. Eu também queria que fosse diferente. Mas não é porque alguém diz o contrário, mesmo que seja uma pessoa tão querida e em quem confiamos, que passa a ser.

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