Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Todas Mente

É possível morrer com boa saúde?

A promessa da longevidade em um frasco de manipulação

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São Paulo

"How to die in good health" é o título de um recente artigo da revista The New Yorker (15/04), escrito pelo médico Dhruv Khullar. A pergunta me chamou atenção. A morte é, por definição, o fim da boa saúde. É a falha final do corpo e da mente. Ao mesmo tempo, enxergar isso como uma falha é problemático, porque nosso destino seria, inevitavelmente, sempre falhar. Uma caminhada fadada à ruína. Tio Paulo morto na cadeira de rodas no balcão de um banco, sua cor pálida, a boca aberta, a magreza do corpo desnutrido, é a imagem dessa ruína. A morte é feia.

O artigo de Khullar traz uma longa entrevista com Peter Attia, o médico da vez que ficou famoso prometendo longevidade, ou melhor, uma morte saudável. O objetivo, tanto de Khullar quanto de Attia, é poder chegar à velhice em boas condições para brincar com um neto imaginário. Carregar no colo, sentar no chão para fazer quebra-cabeça, ter mobilidade até o final da vida.

Attia atende pacientes ricos, dispostos a pagar uma fortuna em vitaminas e exames. Seu livro, "Outlive: The Science And Art of Logetivity", é um bestseller, top 1 da listcasa do New York Times. Nele, o médico define a medicina 3.0, fundamentada na prevenção, e apresenta argumentos populares para uma vida saudável; exercícios físicos para ganho de massa muscular, ingestão de muita proteína, jejum e atenção para saúde mental.

Em seu consultório, pede uma ressonância magnética completa do corpo, um exame que tem efeitos colaterais, por causa do contraste injetado, além de ser muito caro. Esse exame costuma ser criticado por encontrar tumores e cistos benignos, que acabarão demandando novos exames e procedimentos invasivos com mais custos e mais efeitos colaterais. Fora a ansiedade para os pacientes. Attia também solicita testes de DNA para verificar predisposição a doenças. Um paciente pode sair de lá sabendo que tem 80% de predisposição para Alzheimer, por exemplo, e ganhar uma batelada de receitas de suplementos que supostamente evitariam a doença. Além de prováveis pesadelos e pre-ocupações na família inteira.

Eu fui, recentemente, a uma consulta de medicina integrativa e personalizada. Saí de lá com receitas, pedidos de exames de DNA e promessas de um plano nutricional feito especialmente para mim. Compostos logo foram entregues por uma farmácia de manipulação de confiança.

Deixei ali um terço do meu salário, mas saí feliz. Achando que estava dando atenção para mim, cuidando da minha própria pessoa, algo que sinto falta de fazer no dia a dia. Eu amo trabalhar e costumo achar que cuidar do corpo está em segundo plano. Cancelo qualquer ginástica por uma reunião. Mas gostaria de dar uma prioridade maior ao corpo.

Permaneci bem feliz com meu desembolso (ou investimento, como dizem) até assistir a um vídeo do Drauzio Varella, "As maiores mentiras que já ouvi durante a minha carreira", publicado no dia seguinte à minha consulta. Drauzio abre dizendo que as piores mentiras são as que vêm de médicos, não de leigos. Fiquei curiosa. Ele tem 60 anos de carreira, deve ter escutado barbaridades.

Imaginei que no topo da lista estariam fake news sobre vacinas, pílula azul, ivermectina. Mas não. A primeira mentira trata-se de vitaminas. Drauzio critica a hiper prescrição de vitaminas. Diz que a suplementação deve ser feita com cautela e só em casos muito específicos. Ele enxerga o crescimento do mercado mundial de vitaminas, estimado em 20 bilhões de dólares, como algo perigoso.

Attia não é um médico charlatão. Sua biografia traz folêgo e voz. Ele é formado em Stanford e trabalhou no John Hopkings, considerado um dos melhores hospitais do mundo. Mas usa ferramentas que não têm comprovação científica, como a ingestão de rapamicina: uma substância que afeta o sistema imunológico, normalmente usada em pacientes com transplante de órgãos. A substância também tem efeitos colaterais, como feridas na boca.

Os avanços da medicina nos fizeram viver cada vez mais. Em 1901, quando meu avô nasceu, a expectativa de vida era de menos de 40 anos, hoje é de mais de 70. As vacinas e os antibióticos foram fundamentais para isso. Mas os telômeros são finitos e em algum momento, chegaremos no limite, se não tivermos uma simbiose com a máquina. Ou nem conheceremos esse limite justamente porque nos mesclaremos à máquina antes disso.

Talvez, se tivéssemos uma imagem da morte que não trouxesse tanto pessimismo e medo, não haveria esse esforço em viver centenas de anos. O fim de um ciclo é natural do ser humano e da natureza.

Morrer com qualidade pode ser algo bem mais simples, como o processo oferecido pelos médicos paliativistas, e a equipe multidisciplinar que acionam.

Ser humano talvez pressuponha um pouco dessa feiura no final da vida. Ela pode ser aceita e se tornar emocionante, trazer sentimentos inacessíveis até então. Isso só é possível com o alívio de sofrimento, sem a dor física que um corpo parando de funcionar pode gerar.

No final das contas, Attia apresenta uma característica particularmente humana. Ele é contraditório. Ao mesmo tempo em que almeja viver 200 anos, acha que tudo bem se morrer amanhã. Se declara satisfeito com tudo o que conquistou até aqui. Quer dar mais valor à família e simplesmente tentar ser feliz.

Leia mais: Por quantos anos deveremos viver?

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