Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Os pequenos lutos da vida

Você deveria agradecer

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Há uns 20 anos, um grande amigo foi assaltado. Levaram seu carro, seu celular, talvez um computador. Na época, havia muitos sequestros-relâmpago em Belo Horizonte e a tendência das pessoas ao ouvirem sua história era dizer: "você deveria agradecer que foi só isso".

Ele me confidenciou sua irritação com essas palavras. "Alguém se sentiu no direito de apontar uma arma para a minha cabeça, levar minhas coisas e me largar no meio da rua. Por que eu deveria agradecer por isso? Se é sorte não ter sido sequestrado e morto, sorte mesmo é não ser assaltado."

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Há algumas noites, comecei a perder o sono com crises alérgicas.

Fui uma pessoa muito alérgica até os vinte e poucos anos. Tenho lembranças horríveis de noites em claro em Petrópolis, onde nasci, e ainda me arrepio quando vejo aquelas colchas com franjinhas nas pontas - se a alergia na serra tivesse um rosto, certamente seria uma dessas.

Quando comecei a namorar meu atual marido, nós compartilhávamos nossas vidas alérgicas, o que certamente colaborou para que ficássemos juntos. Ele, que já houvera passado por uma grave alergia a sol um tempo antes, espirrava 10 vezes toda manhã. Resolvemos procurar ajuda. Na consulta de identificar as alergias, que na época consistia em umas picadinhas no braço, reagi a 9 de 10 coisas.

Fizemos um tratamento por 6 meses, com remédios que me deixaram dormindo 6 meses. Acordar para ir para a faculdade se tornou um momento horrível. Eu contava as horas para voltar pra cama e poder dormir mais um pouquinho antes de encarar o estágio. Os espirros matinais do meu marido diminuíram de 10 para 4. No início, achei que meu resultado não tinha sido tão auspicioso. Com o tempo, as coisas foram melhorando.

Mas eu não perdia por esperar. Um tempo depois, poucos dias antes de um 31 de dezembro, comecei a sentir uma coceirinha nos olhos. Ela foi piorando, piorando, até que percebi que não estava vendo muita coisa. Ao me deparar com um espelho, percebi que meu olho esquerdo, o único que enxerga, estava fechado, como se eu tivesse levado uma picada de abelha. Imaginei que tivesse sido algo do tipo, tomei um antialérgico e sobrevivi.

Depois de umas quatro ou cinco vezes com os mesmos sintomas, fui parar no hospital para tomar Prometazina na veia. Falei com a médica sobre a minha suspeita de que a alergia fosse a medicamentos: dipirona, antigripal, antiinflamatório, mais um monte de coisa que, conforme fui percebendo ao longo dos anos, provocam exatamente a mesma reação.

Ela achou preocupante. Parei de tentar medicamentos primos dos que eu já sabia que me davam alergia, mas, até hoje, sou surpreendida.

"Você deveria agradecer, tem sorte por nunca ter tido nada mais sério".

Os incômodos menores, do tipo poeira e coceira, passaram a ter menos importância diante do medo de, literalmente, morrer de alergia. Mas, durante a minha gravidez e depois que minha filha nasceu, tive os melhores 30 meses não alérgicos da minha vida. Nenhum espirro, nenhuma coceirinha. A preocupação era apenas o parto. E se eu tivesse alergia à anestesia? "Não se preocupe", um amigo anestesista me disse. Somos bem preparados para intervir em casos assim.

Claro, por que me preocupar de ter um choque anafilático enquanto um bebê insiste em querer sair da minha barriga?

Deu tudo certo, vomitei um pouco de morfina, nada grave. Impossibilitada de tomar remédios para dor depois do parto, uma cesárea, tive que me virar com um dos últimos que me restam, a marca famosa de paracetamol. Sim, as dores mais fortes que tenho na vida são encaradas com paracetamol.

Sempre achei que nós, alérgicos, não temos o reconhecimento social que merecemos. Ser um adulto funcional durante essas crises é uma missão difícil.

Mas eu deveria agradecer.

ilustração de mulher chorando
Às vezes é ok não estar bem - BBC News/Getty Image

Há 15 dias, fui com a minha mãe ao ortopedista. Faz algum tempo que ela sente fortes dores nos ombros.

As dores se intensificaram durante a pandemia. Desde que ela teve os primeiros AVCs hemorrágicos, em 2012, as sequelas motoras exigem esforço diário. Muitas sessões de fisioterapia, terapia ocupacional, hidroterapia.

Para pessoas como minha mãe, a pandemia foi especialmente difícil. Mais temerosas do que o vírus pudesse fazer sobre sua já delicada situação de saúde, nem sempre foi fácil decidir entre arriscar a vida e anos de investimento em reabilitação.

Minha gravidez e depois uma neta recém-nascida forçaram a primeira opção. E agora o tempo cobra seu preço.

As alternativas para suas dores são limitadas. Nenhuma delas é simples, muito menos tem benefícios garantidos. A parte mais difícil é que o braço funcional da minha mãe precisa ficar imobilizado por pelo menos 30 dias depois de uma cirurgia. Na prática, isso significa depender de alguém em tempo integral. Algo que a recorda do trauma de quando ficou hemiplégica por 40 dias, 12 anos atrás, na época dos AVCs.

Enquanto olhava seu semblante desamparado, fiquei pensando em quantas vezes em mais de uma década ouvimos alguém dizer, com muita convicção, que ela deveria agradecer.

O AVC hemorrágico, que corresponde a apenas 10 a 15% dos AVCs, tem uma mortalidade de até 56% ao fim de 30 dias. Somente 20% dos sobreviventes estão independentes em 6 meses.

Minha mãe voltou a dirigir mais ou menos cinco meses depois dos episódios. Em outras palavras, sua situação é a igual a de menos de 9% das pessoas que passam pela mesma coisa. Ela teve uma sorte imensa. E tem até hoje.

Ela deveria agradecer.

Deveria?

Foram dois acidentes vasculares cerebrais hemorrágicos, algo raro. Aos 53 anos, ainda mais raro. Apesar de sua surpreendente recuperação, isso encerrou sua chance de uma velhice com mais autonomia apesar de todo o investimento em saúde de uma vida inteira - comer bem, não fumar, não beber, praticar exercícios físicos diários. Desde 2012, ela se vê obrigada a ocupar grande parte do seu tempo com reabilitação e a conviver com dores e medos diários.

Hoje, tivemos uma consulta com o neurologista que a acompanha desde então. Ele não demonstrou preocupação com a cirurgia em si. Mas lembrou que seus eventos têm relação com suas emoções e seu pós-operatório não será fácil. E só ela pode saber os riscos que está disposta a correr e quanto as dores que sente os justificam ou não. Ninguém mais.

Em uma entrevista que fiz para o Morte sem Tabu no ano passado, o escritor Igor Reyner disse que talvez a gente não devesse hierarquizar as coisas. Tendemos a dizer com muita naturalidade que não há nada pior do que perder um filho, por exemplo. Entendo a frase, ainda mais agora que sou mãe. Mas será que ela nos ajuda? Alguém que acaba de perder seu pai amado sente dor menor por pensar "ainda bem que não foi meu filho?".

Sentimentos são muito singulares. Mesmo que algo nos pareça irrelevante à luz das grandes mazelas do mundo, ainda pode nos deixar com medo. Eu vi nos olhos da minha mãe, ao ouvir sobre os efeitos de uma cirurgia para dor no ombro, uma tristeza que há muito tempo não via, talvez nem nos piores momentos da sua frágil condição de saúde há 11 anos.

Sei que é importante reconhecer nossos privilégios e nossas sortes. Penso neles diariamente. Sei também que o peso disso é muito maior quando estamos vivenciando guerra(s). Mas às vezes, como no exato momento em que escrevo, com uma amigdalite viral (sem indicação de antibiótico), para a qual paracetamol pouco ajuda, ou mesmo quando passo mais um dia derrubada pelos antialérgicos que me dão sono, eu só queria acolher minha dor, mesmo que por alguns instantes, sem me convencer (ou ao mundo) de que "eu deveria agradecer".

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