Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Todas Mente São Paulo

Maior dos tabus, suicídio sobe aos palcos de São Paulo

Ana Beatriz Nogueira, Kika Kalache e Natália Lage falam de suas peças com o tema

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Cynthia Araújo

Doutora em Direito, autora de 'A Vida Afinal: Conversas Difíceis Demais para se Ter em Voz Alta'

Eu acho que a vida é feita de pequenas mortes e, a cada uma delas, há uma nova abertura para se retirar brevemente e repensar. Para mim, o grande mistério é este: como levar a vida?

Ana Beatriz Nogueira

Diretora de "Ensaio para um adeus inesperado"

Nos últimos tempos, tenho a sensação de ver a morte ser debatida em muitos lugares.

Um amigo médico acha que é viés de confirmação. Ele diz que eu apenas observo mais, especialmente porque escrevo aqui no Morte sem Tabu.

Pode ser. Fui à Feira do Livro em São Paulo e brinquei que, a cada estande em que entrei, encontrei vários livros sobre morrer, como se o assunto estivesse na moda. Talvez seja meu olhar, que cisme em procurar as variações da palavra antes de qualquer outra.

Mas alguns dados são objetivos: uma das primeiras mesas da feira, por exemplo, foi sobre luto e isso não é exatamente uma novidade em eventos literários e afins. Posso afirmar, com a certeza possível, que não estamos mais em silêncio absoluto sobre o morrer. Na conhecida obra "História da Morte no Ocidente", Philippe Ariès diz que, "durante a última metade do século, os historiadores e especialistas das novas ciências do homem foram cúmplices de sua própria sociedade: esquivaram-se, tanto quanto o homem comum, de uma reflexão sobre a morte".

A arte também silenciou. O assunto esteve obscurecido por palavras não escritas e frases não ditas. E agora, não sem certa dificuldade, procuramos uma forma de (re)encontrá-las.

Sra. Klein

Saindo da Feira do Livro, fui assistir à peça "Sra. Klein", inspirada na vida real de um dos maiores nomes da psicanálise, Melanie Klein, e dirigida por Victor Peralta. Embora soubesse que a morte era parte importante do texto, não fazia ideia de quanto. E nem era exatamente por isso que estava lá. Fui pela amizade virtual de algum tempo com uma das atrizes, Kika Kalache, que interpreta Paula Heimann, uma psicanalista judia, refugiada do regime nazista em Londres.

A peça ficou em cartaz por um ano, lotando teatros em várias cidades. O fio condutor do espetáculo são os conflitos reais entre Melanie Klein (Ana Beatriz Nogueira) e sua filha também psicanalista, Melitta (Natália Lage/Fernanda Vasconcellos), com intervenções de Paula.

Mais do que manifestações de relações familiares disfuncionais, é a morte de Hans, filho da Sra. Klein, que dá matéria e tom aos diálogos. O luto aparece como personagem central, explícito. Suas manifestações podem até soar contraditórias, às vezes, mas é apenas demasiadamente humano. Melanie Klein não é só a personagem histórica importante, é uma pessoa que sente dores e culpas com as quais nos identificamos, mesmo que em outro lugar e em outro tempo.

Ana Beatriz Nogueira queria encenar Sra. Klein há mais de 20 anos, desde que a assistiu representada por Nathalia Timberg. A personagem construída em cada detalhe é segura de suas convicções, rigorosa, técnica, pouco afetuosa e nada disso diminui ou afasta a intensidade de seu luto. Ainda que nem sempre abalada como convencionamos que uma mãe que perde seu filho deveria estar, Melitta reconhece que saber da suspeita de suicídio de Hans acabaria com a mãe. Alternando entre sensibilidade para protegê-la da verdade, e raiva para que Klein se sinta culpada por essa verdade, Melitta acaba não resistindo ao impulso de lhe infligir dor.

Atrizes Natália Lage, Ana Beatriz Nogueira e Kika Kalache estão sentadas em cadeiras e vestem roupas pretas
Natália Lage, Ana Beatriz Nogueira e Kika Kalache posam na primeira temporada de "Sra. Klein" em São Paulo - Arquivo pessoal

Sempre tive um incômodo específico com os discursos de responsabilização indireta por suicídios, muito antes de saber que são sempre multifatoriais, não determinados por apenas uma causa específica. Parece-me que a culpa que carregamos por não conseguir impedir tragédias a alguém que amamos já é sempre grande demais. E é assim que sinto uma forte identificação com a Paula de Kika Kalache e sua vontade de encontrar qualquer evidência que afaste a suspeita de que Hans tirou a própria vida - ainda que suas ações fossem guiadas apenas pelo interesse de conseguir a atenção de Melanie Klein: "Paula não dá ponto sem nó, ela quer sobreviver", diz Kika.

Em retrospectiva, a vida pode ser bem diferente do que parecia ser. Há sinais que só se transformam em sinais à luz de eventos futuros. Cartas, palavras, viagens que não passariam disso, não fosse a morte transformá-las em indícios de que algo já não estava bem.

Contrariando minhas expectativas, Sra. Klein não parece sentir alívio com um possível afastamento da hipótese de suicídio. Saber que não teve algum papel na morte do filho a deixa ainda mais devastada do que a morte em si. Estudiosos de psicanálise certamente darão nomes para isso. Narcisista? As três são, Kika Kalache me diz. "Mas a Melanie Klein é altamente narcisista. O maior desespero acontece quando ela descobre que o filho não morreu por causa dela".

Na vida real, não se sabe, com certeza, o que aconteceu com Hans, e a hipótese de suicídio não foi descartada.

Ensaio para um adeus inesperado

Suicídio é também o tema da atual peça de Ana Beatriz Nogueira, desta vez como diretora, junto de Lena Brito. No espetáculo "Ensaio para um adeus inesperado", com Natália Lage e Caio Manhente, uma mãe tenta se reorganizar após a partida precoce do filho.

Em uma conversa longa e transparente, ouvi Ana Beatriz falar com uma generosidade peculiar sobre o teatro e sobre a arte em seu estado mais puro. Quando falamos, a parte inicial deste texto já havia sido escrita. Ela disse que a essência de "Sra. Klein" foi captada: "está tudo ali".

Ana percebeu a coincidência dos temas tratados em "Sra. Klein" e em "Ensaio para um adeus inesperado". "Eu sinto que nosso olhar fica mais aguçado quando a gente já está envolvida com um assunto". Mas a escolha por uma nova peça que tivesse o suicídio como aspecto central não foi exatamente proposital, ao menos não de forma consciente. Sua decisão pelo texto de Sérgio Roveri, em tempos diferentes para a mãe, que sobrevive, e para o filho, que morre, foi influenciada pela capacidade da peça de tratar de um assunto pesado - ainda o maior tabu dentre todos os grandes tabus da morte - de forma tão poética e bonita, a dar uma certa leveza ao espetáculo.

Também conversei com Natália Lage, que teve o mesmo sentimento: "o Sérgio escreve muito bem, a maneira como ele conduz o texto dá uma certa leveza ao assunto, quando mostra como mãe e filho percebem o mundo de formas diferentes e como a mãe terá que ressignificar a sua vida".

Para Natália, o início da preparação para a personagem foi desafiador, já que ela não é mãe e, até então, não tinha referências de pessoas próximas que haviam morrido por suicídio. Mas logo a atriz percebeu que o assunto não lhe era distante e é cada vez mais frequente. "Logo que aceitei fazer a peça, soube que pessoas próximas de duas amigas perderam filhos de vinte e poucos anos por suicídio. Eu acho que, por mais espinhoso que seja, o assunto precisa ser falado, desmistificado".

Ana Beatriz diz que a perspectiva da morte sempre a faz pensar em como está vivendo. "A gente não precisa estar doente para fazer isso. Eu acho que a vida é feita de pequenas mortes e, a cada uma delas, há uma nova abertura para se retirar brevemente e repensar. Para mim, o grande mistério é este: como levar a vida?".

"Eu gosto de buscar o que me tira da ignorância, gosto de aprender", ela diz. E não necessariamente a gente aprende com respostas. "Na peça ‘Ensaio para um adeus inesperado’, não são respostas, mas perguntas que levamos para casa".

Embalada pela melodia de longas noites para vidas muito curtas, o espetáculo liga os monólogos distintos com uma corda de crochê vermelha a partir das roupas dos personagens. Ana Beatriz afirma que alguns espectadores vincularam a ideia ao cordão umbilical, um elemento óbvio a unir mãe e filho: "É bem mais profundo que isso".

Rostos colados do Ator Caio Manhente e da atriz Natália Lage, que interpretam filho e mãe na peça "Ensaio para um adeus inesperado"
Caio Manhente e Natália Lage em foto para a peça "Ensaio para um adeus inesperado" - Guilherme Scarpa/Guilherme Scarpa

Para Natália, a peça apresenta possibilidades, olhares assertivos para os momentos difíceis que sucedem as perdas, não apenas as piores perdas como o luto de um filho jovem por suicídio. "Depois de uma grande perda, de um luto profundo, quais são as maneiras de olhar pro mundo, quais são as relações que nos sustentam, como funciona nossa rede de afetos".

"Ensaio para um adeus inesperado" estreou em Osasco no último dia 05 e passará por Campinas, Mauá e Diadema nas próximas semanas.

Surda

No dia 01 de julho, Ana Beatriz Nogueira venceu o Prêmio APTR, laureação idealizada pela Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro, na categoria atriz em papel principal, por Sra. Klein. A última apresentação do espetáculo aconteceu no dia 30 de junho, em São Paulo.

Ana Beatriz me diz que acha difícil uma nova temporada. Mas dá uma notícia em primeiríssima mão. Produzirá, no próximo ano, a peça de título provisório "Surda", com texto da roteirista Julia Spadaccini, que aborda sua própria surdez. "Apesar de ser inspirada na história dela, a peça fala sobre falta de escuta". E, para Ana, isso tem um impacto sobre todas e todos nós.

Atriz e diretora Ana Beatriz Nogueira posa para foto sentada em um banco vestindo calça preta e camisa laranja, com um paletó marrom por cima
Ana Beatriz Nogueira dirige "Ensaio para um adeus inesperado" - Lúcio Luna/Lúcio Luna

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