Emenda vetada pelo STF sobrevive e chega a 30% dos municípios em ano eleitoral

Governo Lula pagou neste ano cerca de R$ 1,9 bi em emendas pendentes de anos anteriores

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São Paulo e Brasília

As transferências de dinheiro público com baixa transparência e sem critério técnico realizadas por meio das chamadas emendas de relator somaram R$ 1,9 bilhão em 2024 e devem ter impacto direto nas eleições em quase 1.700 cidades do país, 30% do total de municípios brasileiros.

Essa forma de direcionamento de recursos federais por deputados e senadores ganhou relevância no governo anterior, de Jair Bolsonaro (PL), foi proibida no fim de 2022 pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e continua no governo Lula (PT).

 Sessão do Congresso Nacional
Sessão do Congresso Nacional - Pedro Ladeira -28.mai.2024/Folhapress/Folhapress

Depois do banimento pelo STF, as emendas de relator foram retiradas dos orçamentos seguintes da União, mas ainda têm aplicação na prática por meio de um mecanismo chamado "restos a pagar".

Trata-se de valores que já haviam sido reservados pelo Executivo antes da decisão do Supremo e que entram como uma espécie de pendência para os anos seguintes.

Em geral, os restos a pagar das emendas de relator são de convênios e obras públicas pagas em parcelas. A liberação dos recursos depende do avanço das obras.

O governo Lula herdou R$ 16,3 bilhões, no Orçamento de 2023, em restos a pagar das emendas de relator.

Em valores absolutos, a cidade do Rio de Janeiro foi a mais beneficiada pelos pagamentos desse tipo de emenda em 2024. Ao todo, a capital fluminense recebeu R$ 68,6 milhões até o dia 9 de julho.

Considerando a população da cidade de 6,2 milhões de residentes, segundo dados do Censo Demográfico de 2022, o recurso equivale a cerca de R$ 11,05 para cada carioca.

A maior parte da verba destinada ao Rio em 2024 foi aplicada em obras na avenida Brasil. O dinheiro para o serviço foi empenhado (reservado no orçamento) em 2020.

A cidade que mais angariou recursos herdados de Bolsonaro, por habitante, foi Cutias, no Amapá. O montante transferido ao município corresponde a R$ 1.576,97 para cada gameleirense. Segundo o Censo, a cidade tem 4.461 habitantes e o valor total recebido de emendas foi de R$ 7 milhões.

Segundo dados do portal orçamentário Siga Brasil, o principal enquadramento oficial usado para justificar as transferências de valores foi apoio à política nacional de desenvolvimento urbano voltado à implantação e qualificação viária, que inclui as obras de pavimentação nos redutos eleitorais dos congressistas, com R$ 554 milhões.

A segunda maior ação governamental que recebeu emendas de relator foi apoio a projetos de desenvolvimento sustentável local integrado à assistência comunitária, que foi responsável por abarcar R$ 462 milhões. Na terceira posição ficou apoio à política nacional de desenvolvimento de infraestrutura urbana com R$ 271 milhões.

As emendas pagas por Lula em 2024 abarcam os três anos de emendas do relator. Do total pago, R$ 680 milhões se referem a emendas apresentadas em 2020, R$ 1 bilhão de emendas de 2021 e R$ 275 milhões de emendas de 2022.

A maior parte dos R$ 1,9 bilhão pagos pela atual gestão neste ano eleitoral, a um total de 1.697 cidades, foi direcionada para órgãos públicos municipais, que totalizaram o recebimento de R$ 1,6 bilhão.

Na segunda posição estão órgãos públicos estaduais e o Distrito Federal (R$ 143 milhões), seguido de empresas do setor privado com R$ 96 milhões, entidades sem fins lucrativos (R$ 25 milhões) e empresas do setor público (R$ 21 milhões).

Os recursos saíram do orçamento de 25 órgãos do governo, dentre ministérios, fundos e empresas públicas.

A pasta que mais pagou essas emendas foi o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, que desembolsou R$ 1,2 bilhão.

Na segunda posição está o Ministério da Agricultura e Pecuária com R$ 167 milhões, seguido da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) com R$ 137 milhões. O Ministério da Defesa está na quarta posição com R$ 104 milhões.

Em junho, o ministro Flávio Dino (STF) determinou a realização de uma audiência para discutir o possível descumprimento da decisão da corte que declarou a inconstitucionalidade das emendas de relator.

Dino afirmou à época que não havia ocorrido "a comprovação cabal nos autos do pleno cumprimento dessa ordem judicial".

"Friso que todas as práticas viabilizadoras do 'orçamento secreto' devem ser definitivamente afastadas, à vista do claro comando deste Supremo Tribunal declarando a inconstitucionalidade do atípico instituto", ressaltou.

O ministro do STF marcou a audiência para o dia 1º de agosto.

O repasse de emendas bilionárias com baixa transparência tornou-se um símbolo das negociações entre Congresso e Planalto durante a gestão Bolsonaro.

As emendas em geral são uma forma pela qual deputados e senadores conseguem enviar dinheiro para obras e projetos em suas bases eleitorais e, com isso, ampliar seu capital político. Como mostrou a Folha, a prioridade do Congresso é atender redutos eleitorais, e não as localidades de maior demanda no país.

Depois que o STF proibiu as emendas de relator, o Congresso contornou o veto e encaixou as verbas em emendas de bancada e comissão, que também não apontam o verdadeiro padrinho político da verba.

Durante a campanha de 2022, Lula chamou as emendas de relator de o "maior esquema de corrupção da atualidade", "orçamento secreto" e "bolsolão".

As negociações por verba, porém, seguem com baixa transparência e sob influência no Congresso dos mesmos atores que atuavam na gestão Bolsonaro. No caso da Câmara, o próprio presidente, Arthur Lira (PP-AL), é um dos responsáveis pela partilha de verbas de comissão.

Governo e Congresso dizem que cumprem decisão do STF

Em nota enviada pela Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, o governo Lula afirmou que "o pagamento de restos a pagar para as emendas de relator tem seguido estrita e rigorosamente o que determinou o Supremo Tribunal Federal".

"Conforme essa decisão, o prosseguimento da execução dos recursos que já haviam sido empenhados está sujeito à discricionariedade da pasta responsável, que pode dar prosseguimento nos casos em que as indicações estivessem de acordo com os critérios das políticas públicas. A responsabilidade pelo cumprimento dessas condições é de cada órgão executor de emendas parlamentares", completou a atual gestão.

Em nota, a assessoria de imprensa da Câmara dos Deputados afirmou que a casa legislativa cumpre a decisão do STF.

"Todas as informações em relação a essas emendas já estavam disponibilizadas na página da Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional", segundo a assessoria.

A assessoria de imprensa do Senado afirmou que a casa já prestou informações ao STF quanto ao cumprimento da decisão da corte. Em petição ao tribunal, o Senado afirmou que foram "adotadas sucessivas medidas para ampliar a publicidade, a transparência e os mecanismos de controle institucional e social na indicação das emendas de relator-geral, em especial quanto à obrigatoriedade de identificação do parlamentar solicitante ou apoiador".

Entenda as emendas parlamentares e de relator

O que são emendas parlamentares?
A Constituição de 1988 autoriza o Legislativo a participar do processo orçamentário. Ela permite, dentro de limites que eles façam emendas na proposta orçamentária anual enviada pelo Executivo. Cada congressista tem direito a apresentar emendas individuais, dentro de certos limites. Bancadas estaduais e comissões permanentes do Congresso também têm direito a emendas

Quais são os tipos de emendas?
As emendas parlamentares se dividem atualmente em:

  • Emendas individuais: Cada um dos 594 congressistas tem direito de apresentar até 25 emendas individuais. A execução das emendas era uma decisão política do governo, mas a partir de 2015 o Executivo passou a ser obrigado a executar as despesas previstas por elas
  • Emendas de bancadas: É a verba proposta pelas bancadas estaduais. Em 2019, o Congresso ampliou o orçamento impositivo ao aprovar a emenda constitucional 100, tornando obrigatório o pagamento deste tipo de emenda
  • Emendas de comissão: São valores propostos pelas comissões permanentes da Câmara dos Deputados e do Senado, e pelas comissões mistas, do Congresso
  • Emendas de relator: Usada apenas como forma de corrigir pontuais correções no Orçamento pelo relator da proposta; tornou-se a principal moeda de troca nas negociações do governo de Jair Bolsonaro (PL) e do Legislativo

O que eram as emendas de relator?
Eram uma forma de corrigir eventuais imprecisões na proposta orçamentária anual, feita pelo relator. No governo Bolsonaro, foram usadas para destinar recursos federais a despesas de interesse de deputados e senadores. Suas regras foram alteradas para ampliar o campo de atuação do relator, autorizando o uso das suas emendas para financiar quase todo tipo de despesa.

Qual o problema?
Os recursos separados pelo relator no Orçamento eram distribuídos durante o ano de acordo com indicações dos parlamentares, sem transparência e sem critérios claros para divisão do dinheiro. Elas tinham sido usadas para favorecer deputados e senadores alinhados com o governo e a cúpula do Congresso.

Quando essas emendas foram criadas?
As emendas de relator vêm da Constituição de 1988, a assegurar a participação do Congresso no processo orçamentário. Seu alcance foi ampliado durante o governo Bolsonaro, por iniciativa dos parlamentares e do Executivo.

O que o Supremo decidiu sobre as emendas?
Em 2021, o STF determinou que o Congresso criasse um sistema para divulgação dos patrocinadores e dos beneficiários das emendas do relator. O sistema criado deu mais transparência às emendas, mas ainda oculta muitas informações.

No ano seguinte, a corte declarou a inconstitucionalidade do uso discricionário das emendas de relator. O placar foi de 6 votos a 5 pela derrubada do mecanismo. A decisão também ordenou que os recursos restantes fossem gastos sem vinculação com indicações formuladas pelo Congresso.

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