Na Corrida

Pé na estrada, mesmo quando não há estrada

Na Corrida - Rodrigo Flores
Rodrigo Flores
Descrição de chapéu atletismo

Sobre a importância de correr com a cabeça erguida

Pequenos milagres nos lembram da importância de olhar ao nosso redor

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Rodrigo Flores
São Paulo

Treinar com a cabeça abaixada é um dos pecados capitais do corredor. Endireite a postura, olhe para frente e tenha consciência do seu redor. Assim, na posição correta, você estará pronto para ganhar o mundo.

Vale para a corrida, vale para a vida. Levantar a cabeça nos ajuda a ver aquilo que antes passava despercebido porque estávamos preocupados demais olhando para nossos próprios pés.

Aqui eu peço licença para contar a história do João.

João e eu fomos colegas no UOL. Eu, em conteúdo, ele na área de tecnologia. Tínhamos interações pontuais, relações cordiais e respeitosas mas, ao contrário do que diz o Facebook, nunca fomos amigos.

João sempre foi um cara discreto. Gosta de postar seus treinos, geralmente cercado da mulher e das filhas, mas não escreve legendas inspiradoras. Também não faz dancinha. As fotos tampouco são dignas de prêmio. Em resumo: ele é apenas mais um conhecido entre tantos que aparecem na minha timeline das redes sociais todos os dias.

Quando comecei o blog "Na Corrida", aqui na Folha, passei a prestar um pouco mais de atenção naqueles que, como eu, gostam de correr. Parei de olhar para meus próprios pés e levantei a cabeça. Foi assim que me dei conta de que algo extraordinário acontecia na tela do meu celular.

João não é um atleta. É um cara comum que se divide entre compromissos profissionais e familiares, como a maioria de nós. No meio dessa rotina, ele encaixou a corrida. Até aí, nada de mais. Só que João corre todo dia. Todo dia mesmo, sem falhar. Hoje, quando você estiver lendo este texto, ele terá completado mil dias consecutivos de corrida. São quase três anos sem passar um dia sequer sem correr, faça chuva ou faça sol.

Passo a palavra ao João para que ele conte a sua história.

João Galdino registra treino acompanhado de mulher e filhas. Uma corrida entre as mil feitas desde janeiro de 2020.
João Galdino registra treino acompanhado de mulher e filhas. Uma corrida entre as mil feitas desde janeiro de 2020. - Instagram/@galdinosteam

"Tudo começou com um post que vi na rede social. Uma pessoa se propôs a correr 30 dias seguidos. Gostei da ideia, e como já tinha o hábito de praticar exercícios, resolvi tentar o mesmo desafio. Comecei no dia 1º de janeiro de 2020. Um mês depois, percebi que tinha vontade de continuar. E assim segui, sem prazo para terminar. Até que, em março, veio a pandemia.

O início da pandemia foi o período mais complicado para mim. Por um lado, correr era importante para eu manter a saúde e a sanidade. Por outro, sentia certa hostilidade nas ruas – mesmo sem aglomerar, eu era visto como alguém que estava rompendo a quarentena. Fui me adaptando às circunstâncias. Às vezes corria na escada do prédio. Outros dias trocava a rua pelos fundos do meu condomínio. Em uma área equivalente a uma quadra de futsal, cheguei a correr uma meia maratona.

Felizmente nunca me machuquei nesse período. Mas já passei apuros. Uma vez viajei para os EUA, com escala na Colômbia. Cheguei em casa às 23h30. Corri para o meu quarto, troquei de roupa e fui para a esteira – e assim não perdi a minha sequência.

Esses mil dias me ensinaram que a corrida não precisa ser um esporte individual. Fui agregando minha família, amigos e vizinhos. Há dias em que saímos em oito pessoas para correr. Minhas filhas vão conversando, eu fico mais quieto, e avançamos no ritmo dos mais lentos. Se, por qualquer motivo, precisamos nos separar, alguns metros adiante já estamos juntos novamente. Não busco recordes pessoais, não ligo para o meu pace. Gosto de me sentir fisicamente bem, mas troquei a competitividade pelo prazer de ter pessoas junto comigo.

Quando você sai do modo competitivo, você vê que a corrida pode ser um evento social. Corremos dando bom dia para as pessoas, damos nossas barras de cereal para moradores de rua. Nas provas, sempre há alguém do lado que precisa de uma palavra de incentivo. O esporte pode ser individual, mas a experiência é coletiva.

Completar um mês foi marcante. O primeiro ano também foi muito importante. É claro que eu fico feliz de alcançar a marca simbólica de mil dias, mas o número em si já não importa tanto. Não teve festa. Foi uma corrida normal. Há forma melhor para celebrar a rotina do que repetir o que sempre faço? "

João nos lembra que há muitas formas de amar a corrida. Distância e velocidade são importantes para alguns, mas o modo competitivo está longe de ser a única forma de curtir esse esporte. Não importa o caminho, o que vale é seguir por ele no seu ritmo. Sempre de cabeça erguida.

PS: Provavelmente você conhece histórias tão ou mais incríveis do que essa. Quer compartilhar elas comigo? Escreva para blognacorrida@gmail.com ou mande mensagem para mim nas redes sociais.

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