"Voy a viviiiiir,
Voy a gozaa-aar*
Vivir mi vida,
Lalala-láááá-áááááá"
No metrô, o señor calvo canta em troca de moedas. Acentua a última sílaba do refrão de Marc Anthony, combinando a voz áspera com acordes de sua guitarra algo desafinada.
O conjunto meio trupicante e gutural contrasta com a mensagem fluffy da letra.
O corredor subterrâneo que conecta as estações de trem e metrô da praça Catalunya, no coração de Barcelona, invariavelmente causa uma discreta claustrofobia em seus transeuntes --imagino eu, sendo um deles e respirando com dificuldade sob a minha máscara de pato ffp2.
Problema que não tem o tocador-de-guitarra-de-metrô dessa manhã fria de terça-feira: com a surrada máscara cirúrgica no queixo, a boca escancarada não tão cheia de dentes, ele já expele as primeiras notas do hit seguinte, muy familiar:
"Sábaduu na balaaaa-adaaa..."
***
Dentro do vagão, hora do rush, um corpo xovem e longilíneo se esparrama em posição Savasana (horizontal) por todo o conjunto de assentos de cor cinza, em geral reservados aos idosos, gestantes e tal.
Pelo cós da calça cargo, toda salpicada de tinta branca e outras manchas da vida, sai um elástico negro com os dizeres CALVIN KLAIN.
Ele tosse, tosse y tosse um pouco mais, olhos fechados em um sono conturbado, grunhindo e movendo a cabeça de um lado ao outro. Um ríctus no canto da boca me sugere loucura (aaahn, julgamentos....), o cheiro acre me denota vida de rua.
Em seus sonhos, sequer se dá conta da volumosa plateia, ampliando a clareira ao seu redor com cada acesso de tosse, num efeito Moisés-no-mar-com-Covid. Dorme (ou não), e não posso deixar de admirá-lo.
***
No bar ao lado de casa, sorvo um café numa mesinha do lado de fora, aproveitando o calorzim da manhã, quando um rapaz de seus 20 e tantos anos com um cachorro se detém ao meu lado na calçada.
Espia dentro do bar, acende um cigarro, impaciente. "Rosana!", chama, mal-humorado.
Vem uma jovem chinesa (este é um desses bares que popularmente são conhecidos aqui na Espanha como "xino" ou "chino" --um dos muitos negócios dominados pelos muitos chineses imigrantes) e começa uma discussão.
"Olha, o que aconteceu ontem é inadmissível", dispara o cara, a voz baixa entredentes. "Vocês estão em conluio com a polícia, qualé? Já vi 'polis' aqui antes, outro dia até me convidaram para um 'cubata' (drinque), estavam me testando, não é? Pra pegar quem está fora das normas, não é? É meu direito vir aqui". Ela usa máscara, ele, não.
A menina murmura uma desculpa e argumenta que não querem confusão no bar. Que é melhor que ele busque outro lugar. Trocam mais algumas palavras e ele se vai, irritado.
Converso com a dona, uma outra chinesa muito amável, olheiras fundas. "Aqui, os clientes em geral são educados e nunca tenho problemas", diz. Quando eu pedi o café, ela tinha me solicitado o certificado Covid, mas, como me sento do lado de fora, não é obrigatório apresentá-lo. "Esse rapaz não é má pessoa, mas quando bebe... [revira ozoinho] Ele não se vacinou, não tem o certificado Covid, se recusa a botar a máscara para entrar no bar e ainda por cima chamou a polícia ontem".
--E o que houve quando veio a polícia?, pergunto.
--Nem desceram da viatura. Pela cara acho que já estão cansados desse tipo de ocorrência. Mandaram o rapaz buscar outro bar pra beber e foram embora...
***
A señora desce os 31 degraus que dão acesso ao metrô com infinita meticulosidade, agarrada ao corrimão metálico. "Eu contei... há muito tempo", me informa.
Entrevejo sua pele branquissima e enrugadíssima, como um desenho abstrato que eu penduraria na parede da sala, ao lado de orquídeas e cadernetinhas de fotos 3x4. Emoldurada por 336753 capas de tecidos entre rígidos e fofos, e emanando odores indescritíveis, mezzo ateliês de costureiras e banho de ofurô na casa da minha batian**, essa senhora española me faz pensar no Sphynx, aquele gato sem pelos que numa página de anúncios local custa de 400 a 1000 euros a unidade, para decoração de lares abonados com ou sem amor.
(Bom, um Sphinx envolto em lã fofiña)
De volta à senhora. Queixa-se do elevador quebrado. De novo, sublinha. "E agora esse micron, nicron....". Busca as palavras, não a corrijo. Que diferença faz.
E encerra a breve conversa, liberando-me pra minha pressa du jour: "No, hija, não preciso de ajuda" --declina, abanando a mãozinha livre com um leve tremor, mas decisiva. "Quem precisa de ajuda é a humanidade".
*****
Ps.:
*"Gozar": De gozo.
1. tr. Sentir placer o alegría a causa de algo. Gozó la vista del mar.
2. tr. Tener o poseer algo bueno, útil o agradable. U. m. c. intr. Goza DE buena salud.
3. tr. cult. Dicho de una persona: Tener relaciones sexuales con otra.
4. intr. Sentir placer o alegría por algo o por alguien. Gozamos CON su compañía. U. t. c. prnl.
Gozarla:
1. loc. verb. coloq. Pasarlo bien o disfrutar.
*Batian: escrita coloquial de "avó" em japonêisss
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