Enquanto assisto à ascensão da ultradireita espanhola nas eleições regionais de Castilla y León, realizadas no último domingo (13), penso no caráter democrático do pan con chocolate español.
Foi num almoço com os sogros. Por sinal, no mesmo domingo. Na hora da sobremesa, a família pede o tal pão com chocolate. O restaurante é uma casa rural antiga (chamada aqui de masía), reformada com uma decô elegante, mas discreta.
Pão Com Chocolate (PCC): sobremesa do tempo da abuela*.
Ou melhor, da tatatatatatatarabuela: existem registros de que, já no século XVII, o espírito cacau-lover espanhol era tão potente que contagiava as terras dominadas pelo Império ibérico.
Nos Países Baixos, por exemplo, sob influência espanhola, os locais começaram a comer pão com chocolate pakacete e nunca mais pararam.
Hoje, os holandeses estão entre os Mestres do Pão Com Chocolate Universal. Uma das receitas mais populares é o Hagelslag, com virutinhas de chocolate (ou chocolate granulado) pulverizadas sobre fatias de pão. Interpretação #1470150894759 do PCC, que também existe em 321098 versões em países como França e Áustria, outros PCC lovers.
(@Hagelswag, empresa holandesa que comercializa as tais virutinhas de chocolate y más)
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Na masía, a uma hora de Barcelona, o vento lufa nazorêia, bafejando ecos das montanhas e pinheiros que nos rodeiam. Ainda se vive a pandemia em terras españolas, ainda preferimos sentar ao ar livre –mesmo com frio.
O PCC vem voando na mão hábil do jovem garçom, numa dessas tabuinhas pesadas de azulejo azulbranco tipo instant-gentrifiquêitor, e eu contemplo y acho graça.
Notem: existe pain au chocolat, croissant de chocolate, brioche recheado de chocolate, pão com nutella, o que ce quiser, mas pão-com-chocolate é. outra. parada. Quase uma não-receita.
Vou tentar descrever, brasileira simplona que soy: imagina que ce compra uma baguete na padaria. Corta em rodelinhas, leva ao forno. Derrete uma barra de chocolate e derrama por cima, tentando fazer uns deseiño gourmet pra comover os comensais. Ato seguido, e aí vem o fundamental da versão española, salpica com escamas de sal e (mucho) azeite de oliva antes de servir. FIN.
Neste caso, o arremate/personalização incluía umas frôzinha e physalis, essa frutinha de doce de casamento que custa ozóio da cara.
Pan con chocolate aceita high and low, vó e glamú. Vive na merenda da criança e no restaurante Michelin mais blublublu que ce puder imaginar em versões atomizadas emulsificadas arquitetônicas.
Assim, gostaria de registrar aqui meu mais absoluto maravilhamento diante de algo tão simples, universal e direto como essa sobremesa, que pode soar a gororoba improvisada durante uma larica daquelas, mas também poderia ser interpretada como uma ode à espontaneidade do viver. Sabe.
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Tradição é um negócio engraçado. A gente pensa que concorda até começar a discutir.
Certa vez, presenciei um debate entre um capixaba e um baiano sobre moquecas. Não lembro do debate, só sei que eles não chegavam a um acordo. Sobre a panela de barro correta, sobre a quantidade do coentro, sobre QUE CAZZO CE TÁ ME CONTANDO QUE COMEU UMA MOQUECA CAPIXABA COM LEITE DE COCO?!
(versão de PCC do @LittleSpain, mercado-restaurante-boutique dos chefs José Andrés e os irmãos Albert e Ferran Adrià em NY)
Descendente de japoneses, também cansei de ver liberalidades sushizísticas. Acho que o sushi já virou pão com chocolate: domínio público, invente o seu.
Quando eu era pequena, tinha pé de amora perto de casa. Na hora do lanche, às vezes a gente ganhava um pão francês e açúcar, e recheava com frutiñas.
Taí. Não tem segredo, e no entanto – [insert olhar nostálgico]
No caso do pan con chocolate, existem tantas versões quanto corações e provisões. Com torrada fina tipo carpaccio, com pan de vidrio, com chocolate quente-frio-sorvete-creme-barra; com decoração frufru e complementos como raspas de laranja; ou papo reto, tipo um tablete derretido entre duas fatias de Panco (aqui, Bimbo).
Tudo isso dito e provado, ainda prefiro comer os componentes separadamente. Pão de um lado, chocolate de outro.
"Mas ce é chata, hein" --me disse um amigo español. Sei lá. Prefiro pão com amora, mas dou o maior apoio ao PCC.
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Horas depois do supracitado almoço de domingo, lá estamos todos empanturrados y reunidos vendo na tevê a contagem de votos em Castilla y León (também chamada CYL por aqui).
Há uma certa aflição no ar.
Minha sogra é de León, mas nosso interesse transcende essa conexão. As eleições são regionais, mas atraem atenção nacional. Alguns consideram o evento uma prévia das gerais de 2023.
O Partido Popular (PP), o maior de centro-direita do país, governa a província há 35 anos. Seu líder nacional, Pablo Casado, é da terrinha. O partido terminou o pleito em primeiro lugar, com o maior número de "escaños" ou "procuradores" (como se chamam os deputados na região): 31.
No entanto, o resultado ficou aquém do esperado. Para conseguir ser maioria e formar um Executivo, o PP agora só tem duas saídas, e nenhuma de seu agrado.
Uma, aliar-se com o grande fenômeno da vez: Vox, o partido de ultradireita do amigo-da-família Bolsonaro Santiago Abascal, que ganhou 13 cadeiras no Parlamento regional (um crescimento de 1200%, já que antes contava com apenas um representante) e se transformou no terceiro partido mais votado da região, atrás apenas do socialista PSOE, que governa a Espanha e perdeu 5 cadeiras em CYL, ficando com 28.
A segunda opção –contar com o apoio do PSOE, seu arquiinimigo das urnas –tampouco entusiasma o PP.
Diante da situação, que vem sendo analisada metonimicamente como uma espécie de bola de cristal para os rumos políticos pós-pandemia de uma Espanha em recuperação, o premiê espanhol Pedro Sánchez, do PSOE, afirmou, em sessão no Senado: "chegou a hora da verdade".
"É preciso decidir se [o PP] governará com a ultradireita ou não. (...) Se creem que a ultradireita é um perigo, talvez possamos nos entender". Mas, nesse caso, disse, seria necessário romper com Vox em todo o país, o que implicaria anular acordos que garantem a governabilidade do PP em colégios estratégicos como Madri.
Sobre o que pensa o Vox de tudo isso, difícil saber com precisão. Eles vetam a participação de órgãos de imprensa não simpatizantes em suas coletivas.
Fundado em 2014, esse partido de inspiração fascista começou a ganhar expressividade política há uns 4 anos, conquistando o eleitorado espanhol identificado com valores nacionalistas e ultraconservadores –entre eles, antigos eleitores do PP. A onda independentista na Catalunha e os movimentos migratórios botaram mais lenha na fogueira, favorecendo a expansão de Abascal y Cia.
Abascal esteve no Brasil há poucos meses, posando abraçadim com o Bolsonaro. Ele e a delegação se hospedaram no Palácio da Alvorada. Reuniões etc. Vamo dominar o mundo, tal. Na página oficial do Vox, a notícia sobre o encontro tem o seguinte título: "Abascal e Jair Bolsonaro unem forças no Brasil contra o auge do globalismo e o comunismo".
(tente encontrar o PCC nesta foto acima)
É muito -ismo junto. O futuro é incerto, mas disso já se sabe há muito tempo. Só o pão com chocolate salva. Ou com amora. Invente o seu.
* abuela: vó! :)
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