Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Sexismo no consultório médico: não, não é 'normal'

Mulheres ainda são diagnosticadas mais tarde que homens e tratadas como histéricas e vítimas de seus hormônios

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Sala de espera de um hospital público espanhol, setor de oncologia.

Depois de uma hora e meia de atraso, chamam no megafone:

- FULANA, PORTA 43!

A médica não levanta os olhos do computador. Cansada, pele emaciada ou é a luz?, o cabelo loiro em desalinho, vai logo disparando:

- Estou aqui vendo o resultado do teu exame de sangue. Está tudo bem. Quer dizer, mais ou menos. Colesterol alto, anemia e tal. Mas, de resto, ok.

Silêncio. Minha cabeça ainda está processando tal enumeração de fatos como se fossem 273 gramas de presunto parma lançados na mesa de um mafioso quando ela diz, impaciente:

- Algo mais?

Desta vez, seu olhar vem na minha direção, mas estaciona na minha orelha esquerda. Quase me viro pra ver se tem fantasma ou apareceu o Brad Pitt na porta.

Não nos vemos há seis meses. Tento entender: são muitos pacientes, é oncologia, saúde pública, nem sempre a notícia é boa, stress nas alturas, seguramente... -- O cabelo loiro, reparo por nenhum motivo em especial, está cheio de pontas duplas. Penso em filhotes de urso de um livro do Faulkner.

Mulher encolhida entre pílulas de cor azul
Pixabay - Divulgação

Incerta, e certamente incômoda, digo:

- Doutora, sim. Uma coisa. Aquele seu informe sobre o meu caso...

- Que tem?

- É que, nele, você afirma que os sintomas que mencionei over and over again --

(LEIAM-SE: sintomas decorrentes de um tratamento oncológico. Incluem falta de libido, insônia da pesssada, fadiga crônica nível subirasescadasmemata, problemas cognitivos, neuropatia, ansiedade, rigidez articular etc)

... que meus sintomas são consequência do CLIMATÉRIO (sic).

- E?

- E daí que não são. E mesmo que fossem. A gente já conversou sobre isso. São resultado da minha medicação. E de tudo o mais.

- Mais ou menos. Mas também são condizentes com menopausa.

- (...)

- Se quiser, reescrevo o informe. Algo mais?

Nesse momento, e não me orgulho, perdi minhas estribeirinhas. Com a voz mais trêmula do que gostaria, e mais puta da vida do que gostaria, caguei com a conversa:

- Sim! Fico muito triste com a sua falta de empatia como médica e, além do mais, mulher. Não tem nada de normal em tudo isso. Mesmo que a gente estivesse tratando de uma menopausa precoce "natural". Sofrer não é normal. Normalizar não é normal [acho que repeti 'normal' umas 1340178 vezes]. Podemos falar sobre o assunto ou é tabu?!

Ferrô. Agora o olhar de urso deslizou e aponta pro meio da minha testa. Bang.

***

Não houve acordo, foi uma catástrofe, me senti um lixo porque odeio brigar e depois ainda me detive no saguão, taquicárdica, reprisando mentalmente As Coisas Perfeitas Que Poderia Ter Dito.

Ela insistiu que é menopausa. Eu insisti que não é o ponto. Ela mesma chamou meu tratamento de "castração química" uma série de vezes, tão casualmente como se estivesse falando de bala soft e receita de rapadura. Tipo: ó, ce tá castrada, tá? Agora vai pra casa e fica feliz de estar viva.

Moral da história: causei, mas não me arrependo de ter trazido o assunto à luz.

***

Em seu livro "Pain and Prejudice", a jornalista australiana Gabrielle Jackson parte de seu convívio com a endometriose para falar sobre o sexismo na medicina, e como mulheres e "gender diverse people" ainda hoje recebem um tratamento diferenciado -- infelizmente, em geral, pra pior.

"A medicina precisa fazer um esforço conjunto para separar os diagnósticos de suposições sexistas", diz, em entrevista à jornalista inglesa especializada em saúde da mulher Sarah Graham, autora do blog Hysterical Women.

A coisa está mudando, no compasso quebrado da evolução da humanidade -- aos socos e pontapés. Longe vai o tempo em que Aristóteles chamou mulher de "macho deformado" e nossa menstruação de uma espécie de sêmen sem alma -- mas falta muito.

Estatisticamente, as mulheres ainda são diagnosticadas mais tarde que homens, são menos retratadas em estudos clínicos e frequentemente são mandadas pra casa, como eu fui (como paciente oncológica e antes), basicamente como histéricas dramáticas de livro do Aluísio Azevedo, que exageram sua dor, sua tristeza, seu sofrimento.

Não por acaso, a palavra "histeria" deriva do grego hystera, que significa, pasme-mas-não, "útero".

"A histeria feminina já foi um diagnóstico médico comum para mulheres, aplicado sempre que estas exibiam emoções 'inapropriadas' como ansiedade, raiva e até desejo sexual. Durante séculos, acreditou-se que o próprio útero era a causa dos sintomas 'histéricos' de uma mulher", explica a ginecologista norte-americana Stephanie McNally, do instituto Katz de saúde da mulher, de Nova York.

"Infelizmente", diz, "essas crenças ainda persistem hoje. Quantas vezes uma mulher fica com raiva, só pra que lhe perguntem se está 'naqueles dias'? Com que frequência uma mulher na perimenopausa vai ao consultório médico para se queixar de ganho de peso, apenas pra ouvir que são seus hormônios?"

"Não são nossos hormônios que estão nos deixando ansiosas ou chateadas - são essas atitudes condescendentes", completa.

***

Bom. Falo de mulheres, mas, previsivelmente, todes que não se encaixam na categoria Homem Branco Cis tendem a padecer discriminação clínico-investigativa -- mulheres trans, homens trans, não-binários, gente de qualquer outra cor etc.

Meu diagnóstico de câncer de mama, em 2017, foi resultado de muita insistência minha, já que eu não fui levada a sério -- de novo, por uma médica mulher, o que me deixa ainda hoje muito triste.

Em uma primeira visita para um check-up, a ginecologista sequer apalpou minhas mamas e, ora-ora, #trendytopic, mal olhou na minha cara.

Só depois de mudar de médica e insistir para que me fizessem o ultrassom de rotina é que descobri que algo não estava bem. No meio do caminho, fui tirada de histérica, neurótica e mala. Sou, mesmo. E aqui estou.

Pior aconteceu com um amigo meu, gay: suas dores abdominais e o inchaço no testículo foram reiteradamente menosprezados como frescura, coisas de sua cabeça, sintomas psicossomáticos. Depois de muito insistir e trocar de médico duas vezes, o diagnóstico: câncer metastático de testículo.

Ele está ótimo agora --mas poderia ter sofrido muito menos, se o diagnóstico não tivesse tardado tanto.

Afortunadamente, nem todas as histórias são tão radicais assim. Mas ficadica pra tutti nóis: lute pela sua saúde. Fale, não cale. Com mais ou menos doçura, mas acredite em você. Quem sabe um dia eu dou um abraço na oncologista e a gente vai tomar um café numa tarde de sol. Quem sabe.

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