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Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Imigração japonesa: livro reúne relatos da repressão em tempos de guerra

Obra referência de Koichi Kishimoto ganha edição inédita em português

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Vila Moraes, zona centro-sul de São Paulo.

Ali, entre bairros de influência nipônica como Saúde e Sacomã, espremida entre ruas com nomes muliexpressivos como Operários, Evolução e Gustav Klimt, está a Professor Koichi Kishimoto, uma discreta ladeira residencial de apenas quatro quarteirões.

Discreta, mas potente: o nome é homenagem a um imigrante japonês que aterrissou em terras brasileiras exatamente um século atrás, em 1922, e cuja voz combativa revive agora em lançamento inédito de livro.

Setenta e cinco anos depois de sua publicação original, a obra mais conhecida de Kishimoto, "Isolados em um Território em Guerra na América do Sul", polêmica e censurada ao longo dos tempos, finalmente ganha uma primeira edição em português (pela Ateliê Editorial, com tradução de Seisiro Hasizume e apresentação dos jornalistas Jorge Okubaro e Masayuki Fukasawa), com lançamento duplo neste sábado (10) e na próxima terça (13), em São Paulo.

O livro reúne histórias de imigrantes japoneses que, como Kishimoto, sofreram repressão por parte do Estado brasileiro após o rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Japão durante a Segunda Guerra Mundial.

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Como tantos (meus avós maternos incluídos), Kishimoto (1898-1977) se mandou lá do outro lado do planetazul em busca de uma vida melhor.

Natural de Shibata, na costa do Mar do Japão, tinha apenas 24 anos quando chegou no Brasil e se estabeleceu em Promissão, interior paulista, com mulher e filha, para trabalhar como agricultor.

Depois, mudou-se para a capital paulista, onde estudou português e virou professor de escola primária. Morreria a filha, nasceriam outros dois. Em 1931, funda o Liceu Aurora (em japonês, Gyosei Gakuen), um internato em Pinheiros que se manteve ativo por mais de 50 anos.

Sua história, que replica a de muitos, poderia ter se perdido no tempo, não fosse o fato de que esse letrado senhor de óculos redondos e olhar desafiador (fotos, é só o que temos, e histórias, e sentimentos: não esqueçamos) botava a boca no trombone, denunciava, escrevia -- e muito. E insistentemente.

Retrato antigo em preto e branco mostra um homem de meia-idade japonês com óculos de aros redondos, braços cruzados, que olha diretamente para a câmera, sério. Ele veste terno com gravata
Koichi Kishimoto - Arquivo de família

Mesmo depois de ter a casa invadida e vasculhada pela polícia um punhado de vezes.

Mesmo depois de ser proibido de lecionar japonês.

E mesmo sendo preso umas tantas vezes, seguido no cangote pelo DEOPS, e vivendo um processo de extradição e silenciamento que se arrastaria por décadas.

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Como explica o próprio Kishimoto no prefácio da primeira edição, de 1947, "as consequências imediatas [do rompimento Brasil-Japão] foram uma série de pressões contra os imigrantes: prisão para quem simplesmente conversava em japonês nas ruas, censura e apreensão de livros japoneses e até de cartas que continham qualquer palavra escrita em japonês; enfim, para o imigrante japonês era extremamente perigoso sair de casa", conta.

"Não obstante, continuei escrevendo o livro, correndo o risco de ser preso, como um desesperado grito contra as intermináveis restrições impostas pelas autoridades."

Concluída em 1943 durante uma estadia na prisão (pasme: por falar japonês em casa) e revisada após uma segunda detenção, "Isolados..." é a única obra em japonês já censurada no Brasil.

Por meio de testemunhos detalhados e sutilezas pessoais, ajuda a lançar nova luz sobre um período ainda um tanto obscuro da história recente de nosso país, tomado por perseguições étnicas que impactaram a vida de muitos e cujos fantasmas seguem rondando nossas gerações de nipodescendentes.

São histórias como a do rapaz de 38 anos, identificado apenas como "senhor I.", companheiro de cela de Kishimoto no DEOPS: vindo de Tóquio, um belo dia mostrou aos vizinhos fotos de seu período no serviço militar no Japão. Por conta disso, foi denunciado e preso como espião do governo japonês em terra brazuquis.

Foto em preto e branco antiga mostra homens, mulheres e crianças em uma plantação de café
Koichi Kishimoto com sua família e outros imigrantes em uma lavoura de café no interior de São Paulo, circa 1925 - Arquivo Pessoal

Como observa o jornalista Masayuki Fukasawa no texto de apresentação dessa nova edição, os relatos reunidos podem contribuir para atualizar a perspectiva histórica sobre o período.

Como complemento ou contraponto à narrativa propagada por obras como "Corações Sujos", de Fernando Morais, centrada no papel da organização terrorista Shindo-Renmei e da polarização política dentro da própria comunidade imigrante (entre os que aceitavam e não a derrota do Japão na guerra), nos relatos de "Isolados..." é o Estado o principal agente da repressão.

" A Guerra terminou, mas a nossa luta está apenas começando. A luta insana que se estendeu por quatro anos deve ser considerada um marco memorável do nosso povo, um episódio inesquecível para os trezentos mil patrícios radicados no Brasil [hoje, 2 milhões, a maior comunidade nipodescendente do mundo], e que deve ser propagado como precioso legado aos nossos filhos, e desses aos nossos netos", diz Kishimoto no prefácio original.

"Não deve ser transmitido apenas oralmente, nem jamais tratado como narrativa lendária. Cabe a nós a importante missão de legar aos jovens, por meio de registros históricos e textos literários, os aspectos reais dos acontecimentos abordados, com o máximo de rigor e profundidade."

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O lançamento do livro acontece neste sábado (10) na Livraria da Vila e também na próxima terça (13) no Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, com mediação de Cláudia Alexandre, integrante da Comissão pela Igualdade Racial. A obra pode ser adquirida no próprio site da editora.

Isolados em um Território em Guerra na América do Sul, de Koichi Kishimoto (Ateliê Editorial)

Lançamento (ambos aberto ao público):

10 de dezembro de 2022, das 18 às 21h
Livraria da Vila - Lorena
Alameda Lorena, 1501 - Jardim Paulista

13 de dezembro de 2022, das 19h às 21h30
Auditório do Sindicato dos Jornalistas do Estado de SP
Rua Rego Freitas, 530 - República, São Paulo - SP

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