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Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Picasso: gênio, misógino e maltratador

No cinquentenário de sua morte, lembremos que legado artístico não é desculpa para os proverbiais abusos do pintor espanhol

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Enquanto curto uma taquicardia vespertina casual e um punhado de pensamentos afundantes tipo estou-sozinha-é-feriado-quem-sou-eu, penso, bem miserável: pelo menos o Picasso também tinha umas deprês.

No cinquentenário da morte do artista espanhol de origem andaluza (Málaga, 1881 - Mougins, 1973), autor do famoso painel Guernica, lembremos que o gênio, como um ser humano qualquer que caminha com suas idiossincrasias sobre esta terra, também está feito de fúria.

A qual, no caso, inclui acessos depressivos, plasmados (pelo menos) na famosa série azul, realizada entre 1901 e 1904.

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Picasso, 1952 - Robert Doisneau/Gamma Rapho via Imagine Picasso

Na controvertida biografia picassiana, porém, o que mais sobressai é o contraste entre vida pública e pessoal: ao mesmo tempo em que fazia a fama, Pablo colecionou um histórico notável de abusos e escândalos íntimos, os quais impactariam, direta ou indiretamente, na degeneração psíquica de não poucas pessoas ao seu redor -- principalmente mulheres de sua vida.

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Womanizer de manual, Picasso chifrou virtualmente todas as suas mulheres. Muito. E bateu em umas quantas. E, dizem muitas línguas, inclusive de seu entorno, era um abusador nato.

"Ninguém na família conseguiu escapar do estrangulamento de seu gênio", afirmou sua neta Marina em seu livro de memórias "Meu avô, Pablo Picasso". O irmão de Marina, Pablito, cometeria suicídio um dia depois da morte do avô, depois de uma vida de abusos de drogas e franca rejeição por parte de Picasso.

Ao longo de sua vida, Picasso teve 7 parceiras oficiais e muitas colaterais, com a clássica preferência por amantes muito mais jovens quanto mais véio ficava. Quase todas, musas inspiradoras de muitas obras, mas também alvo constante de seu caráter irascível e dominador.

É o caso de Marie-Thérèse, então uma menor de idade que virou amante, e cujo corpo o artista queimou mais de uma vez com cigarros, segundo afirma Arianna Huffington em seu "Picasso: criador e destruidor".

Marie se suicidaria em 1977, quatro anos após a morte de Picasso.

Também é notório que Dora Maar, fotógrafa surrealista com quem Picasso esteve durante quase uma década, era às vezes espancada ao ponto de ficar inconsciente -- e há inúmeras testemunhas disso.

Dora é inspiração por trás do famoso quadro "Mulher que chora". Depois de Picasso -- ironia do destino, sqn --, terminaria seus dias deprimida e isolada, internada em uma clínica psiquiátrica.

Françoise Gilot, mulher por quem Picasso largou Dora, seria também uma parceira de longa data. Ao contrário de suas outras mulheres, foi ela quem acabou deixando o pintor -- e sofrendo as consequências por isto.

Como pintora, foi "cancelada" por artistas e galerias depois da publicação de seu livro "Vida com Picasso", um escândalo para a época.

Picasso tentaria impedir a publicação da obra biográfica umas três vezes, e "fritou" a artista em todas as rodinhas do metiê, a tal ponto que ela decidiu deixar o país e tentar a vida nos Estados Unidos, onde reside até hoje, aos 101 anos.

É do livro de Gilot que sai uma das mais citadas e, errmm, memoráveis afirmações misoginistas do artista. "Só existem dois tipos de mulheres: as deusas e os capachos", teria dito (entre muitas outras barbaridades ao longo de 9 anos de convívio).

E por aí vai.

Grande artista, personagem seminal do século 20, sim, mas pera lá. Nem o reverberadíssimo testemunho de Gertrude Stein dizendo "pô, adoro o Picasso, gente fina aí" salva uma biografia em que gênio e abuso andam lado a lado, entranhados y emaranhados como o amor por las musas de su vida em seus inesquecíveis retratos.

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Até o final de 2023, os governos da Espanha e França (onde Picasso viveu bons anos de sua vida até sua morte, em 8 de abril de 1973) celebram o Ano Picasso com uma série de exposições e eventos que culminarão, no próximo outono europeu, com um colóquio internacional e a inauguração do Centro de Estudos Picasso no Musée National Picasso-Paris.

Onde ver Picasso na Espanha

O calendário completo das exposições comemorativas contempla diferentes galerias e museus em França e Espanha.

Na Espanha, há quatro cidades imprescindíveis para os que querem reconstituir sua trajetória.

Começando em Málaga, sua terra natal, é possível visitar a Fundação Picasso - Museu Casa Natal, no número 15 da praça de la Merced, onde Picasso nasceu e passou seus primeiros anos aprendendo a desenhar com seu pai, professor de pintura e maníaco por touradas, flamenco e pombas (daí, dizem, as pombiñas recorrentes na obra picassiana).

Além disso, o Museu Picasso Málaga mantém um acervo permanente de mais de duas centenas de peças de diferentes etapas, contemplando a criatividade multisuporte do artista, entre desenhos, pinturas a óleo, esculturas e cerâmicas.

Já em La Coruña, na Galícia, a casa onde passou 5 anos de sua infância se transformou em um pequeno museu com cara de casa-do-século-19 onde se podem apreciar algumas obras do pai do Picasso e outras do jovem artista.

Em Madri, Picasso-aprendiz batia carteirinha no Museu do Prado. Mas é no Reina Sofía que está a que talvez seja a mais expressiva obra picassiana, o painel Guernica, criado em 1937 logo após a eclosão da Guerra Civil Espanhola e reiteradamente associado à veia republicana-politizada do idiossincrático español.

Além disso, a uma hora da capital está uma curiosa coleção de obras reunida pelo barbeiro e amigo de Picasso, Eugenio Arias.

Em Barcelona, cidade onde Picasso debutaria em grupetes vanguardistas do princípio do século, há o Museu Picasso, com obras formativas do artista.

Foi na capital catalã que Picasso realizou sua primeira expo individual em 1900.

O lugar da estreia é um ícone da cidade. O restaurante/bar Els Quatre Gats (expressão catalã equivalente ao nosso "gatos pingados"), ponto de encontro de artistas e bichos boêmios-intelectuais-vanguardistas do princípio do século 20, e onde Woody Allen rodou umas cenas de Vicky..., mantém as portas abertas até hoje.

O lugar é meio carinho, trendy, etc, mas oferece também um "menú migdía" mais acessível de terça a sexta-feira na hora do almoço. Vale a visita.

Pra quem está em São Paulo, é possível conhecer a exposição imersiva sobre o artista no Morumbi Shopping até 18 de junho.

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