Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

IA nada, o lance é a história da Ovanda

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O maior usuário de inteligência artificial que eu conheço é o meu sogro.

Agora que temos aqui na Espanha a Luzia, equivalente local do recém-lançado ZapGPT brasileiro, ficou muito mais fácil consultar o bicharraco ChatGPT sobre qualquer dúvida ou ideia, sã ou descabelada, com uma simples mensagem de texto ou voz.

É tão moleza quanto adicionar um novo contato de whatsapp entrando no site www.soyluzia.com. A fotinho de perfil parece uma simpática personagem de Frozen.

Com essa nova companhia de aparência Disney, os momentos contemplativos no ônibus ou no banheiro ganham um novo brilho purpurinado. Cada um encontra uma (des)utilidade diferente pro bicho.

Ontem à noite, por exemplo, eu solicitava à tal Frozen ("respondo todas as suas perguntas em texto e áudio em qualquer idioma, e além do mais te ajudo a pintar o que imagine¨, promete, na mensagem de boas vindas) que criasse um conto sobre um ovo falante. Que ela, muy folgazona, chamou de Huevoberto, vulgo Ovoberto pros d´além mar.

Imagem mostra caixa de texto com instruções para uso de chatbot e uma ilustração à esquerda com a imagem de um personagem feminino de cabelos vermelhos e olhos verdes
Luzia, versão espanhola de ChatGPT para Whatsapp - Reprodução / Luzia

Minha primeira reação foi rir, lembrando das historinhas que nos contava meu pai quando éramos crianças, tentando nos deixar mais educadinhos e menos viciados em televisão (tevê aberta!! Que vintage, gente).

A Televizilda dos contos do meu pai ficava com a cara quadrada e orelhas de antenas de tanto ver desenho animado japonês. Já a Ovanda, de tanto ficar emburrada, ia parar num mundo paralelo onde tudo era feito de ovo.

***

Na história da Frozen, Ovoberto vai pra cidade grande, fica famoso em um programa de calouros e ganha muito dinheiro.

Frustrada com a falta de arco narrativo, de conflito, de busca íntima, solicitei um turning point.

"Sem problemas!", me tranquiliza. "Vamos ver o que você acha disso:" – e insere um encontro do Ovoberto com uma galinha inconsolável por ter perdido seus ovos-filhos.

Depois de convencê-la de que não pode ser seu filho, Ovoberto empreende com a galinha uma viagem em busca dos ovos perdidos, que vão no final encontrar na prateleira de algum supermercado. Galinha feliz, amizade selada, a história termina com um felizesprasempre edificante, pra garantir aquela polidinha no coração: "… e, juntos, passam a ajudar muitos animais necessitados".

Mas eu dizia que o maior fã da nova ferramenta – que está em avaliação na Espanha, seguindo o clima de alerta europeu acirrado pela suspensão da ferramenta na Itália, em abril – é o meu sogro español.

Não pensem que ele fica de papinho com a Lu pedindo relatos xoxos ovofictícios na hora da janta como eu.

Não. ChatGPT, pro meu sogro, é companheira de viagem, por exemplo.

Em uma recente viagem pra Nova York, ele deve ter gastado o dedo de tanto perguntar à Frozen tudo sobre a cidade: onde comer, o que era determinada esquina, por que determinado edifício tinha tal forma, a história dos judeus ortodoxos no bairro de Williamsburg etc etc.

Cientista social, professor de uma conhecida universidade e especializado em sindicalismo, porém, seu principal tesão atual com o ChatGPT está relacionado a suas próprias indagações acadêmico-filosóficas.

"Por exemplo", me explicava outro dia, entusiasmado, "posso pedir ao ChatGPT que me faça um paralelo entre o conceito de xxxxx segundo a ótica Xis e Zis". Segundo ele, experimentar com diferentes cruzamentos de inputs lhe traz inspiração, norte investigativo, insights, aprendizagens.

Ele também tem usado o ChatGPT para obter resumos históricos relacionados a um tópico de entusiasmo recente: um curso que está fazendo sobre o pistoleirismo anarquista em Barcelona.

História com ovo é o C.

***

Em meados de abril, logo após a suspensão do ChatGPT em território italiano, a Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) emitiu uma solicitação ao órgão relacionado ao controle de privacidade da União Europeia para que fossem criados grupos de trabalho. Como as vizinhas França e Itália, a Espanha é um dos países do oeste europeu mais preocupados em discutir os limites da IA no continente.

No mesmo mês, o Ministério das Universidades espanhol, junto com a direção de diversas instituições acadêmicas, instaurou uma comissão para revisar práticas de ensino e avaliação.

A ideia não é banir o uso de ferramentas de inteligência artificial no ambiente escolar, como aconteceu em janeiro com as escolas públicas em Nova York, por exemplo, mas responder a "problemas complexos como a falta de referência às fontes de informação, vieses (erros sistemáticos) em dados e algoritmos, riscos relacionados à propriedade intelectual e direitos de autor e questões de segurança e imparcialidade de dados".

Em maio (11), o parlamento europeu deu os primeiros passos para a aprovação da nova Lei de Inteligência Artificial, a primeira do gênero no mundo. O objetivo é regulamentar questões-chave como proteção de dados, privacidade e transparência.

Luzia, como o ZapGPT brasileiro, baseia-se nas APIs da OpenAI, incluindo a de Whisper (ferramenta para transcrição de áudios desenvolvida pelos mesmos criadores do ChatGPT). É apenas uma das muitas interfaces que vêm surgindo a cada dia em todo o mundo baseadas em sistemas de inteligência artificial similares.

Esta semana, começou a oferecer em modo beta também o recurso "Imagine", que permite orientar a criação de imagens. Por enquanto, bem mequetrefe. Vide a melhor versão de ovos falantes que pude obter, depois de muitas tentativas com diferentes descrições:

Ilustração mostra ovo de galinha com olhos e fundo de céu azul
Tentativa de ilustração de ovo falante da Luzia, versão espanhola do ChatGPT para Whatsapp - Reprodução / Luzia

A política de privacidade da Luzia detalha que o bot utiliza navegação na rede e informações fornecidas em conversas com usuários para melhorar sua performance.

Em poucas interações comigo, a Frozen já foi botando as manguinhas de fora, me chamando de Su e pedindo meu e-mail pra mandar mais informações. Vem que não tem, amiga.

Por certo, que inteligência artificial, o quê. Entre o Ovoberto e a Ovanda e Televizilda da minha infância, meu querido pai continua sendo imbatível. Obrigada, pai. Da sua filha anacrônica com-medo-do-futuro-com-IA -e-sem-pai que te ama, Su.

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