Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Adiós, Jane

Atriz foi muito mais do que seus gemidos em uma gravação longínqua

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Quando a over-erótica "Je t'aime... moi non plus" surpreendentemente chegou às lojas de discos espanholas em 1969, cabeças devem ter rolado.

A Espanha vivia a ditadura franquista (1939 - 1975) em sua plenitude. Na voracidade do controle, o departamento de censura do governo proibiu/viria a proibir canções tão diversas como "Imagine", de Lennon, por seu teor "totalmente negativo"; "Just like a woman", de Bob Dylan (com "frases cujo duplo sentido dentro da intenção da canção resulta obscena (sic)", segundo o relatório oficial); ou "Good Vibrations", dos Beach Boys, por seu "sentido totalmente erótico", além de sua letra de "viciados em drogas dos 'USA' (sic), los 'HIP' cuja filosofia está baseada no sexo...".

Como é de se imaginar, qualquer AH UH Babe babe move your hips (Aretha, "Rock Steady"), mas também los trabajadores dolientes ... (Joan Baez, "Las Madres Cansadas") / ou pleasant bibles bound in blood and skin (Leonard Cohen, "Last Year's Man") / enfim, qualquer sombra interpretativa poderia render uma censura sumária, sob a alegação de ser erótica, ambígua, contra a Igreja, contra a autoridade, a propriedade, a família, comunista, homossexual.......


Então, como é que os gemidos explícitos de Serge e Jane em "Je t'aime..." passaram pelo crivo e foram parar nas vitrolas dos ciudadanos espanhóis?

***

A resposta é um pouco frustrante: até hoje, não se sabe exatamente.

O que se intui é que, provavelmente, algum funcionário español aprovou a circulação de um dos hinos eróticos mais emblemáticos de todos os tempos por, simplesmente (e olha que significativo)... não ter ouvido a canção, aprovando-a com base em sua letra -- talvez interpretada como mais uma inocente canção de amor.

Quando o Ministério de Informação e Turismo espanhol, alarmado, finalmente quis recolher a obra, meses depois, já era tarde: as 100 mil unidades do single já tinham sumido das lojas, virado fumaça, fetiche, obra de colecionador, e viriam a ser repassados entre muitas mãos a preços caríssimos no mercado negro.

***

Nos meses seguintes ao seu lançamento, "Je t'aime..." (cujo título, por sinal, dizem que foi inspirado por Salvador Dalí, mas fica pra outra coluna) seria vetada em tudo quanto é canto do universo, do Brasil ao Vaticano.

Isso não impediu que fosse a primeira canção em língua não-inglesa a entrar nos top hits do Reino Unido (ficou 33 semanas na lista, um recorde), ou que o disco chegasse à marca de 1 milhão de exemplares vendidos antes de ser recolhido.

E também não impediu que Jane, então com seus 22 aninhos, se tornasse o sex symbol que seria reiterado, por exemplo, em obras (oportunistas?) como Don Juan, de Roger Vadim (1973), ou Blow-Up, de Antonioni (1966).

Mas Jane, como um ser criativo e intenso, foi muito mais do que seus gemidos em uma gravação longínqua.

É la Birkin, e nem a voz e corpo combalidos por problemas de saúde puderam apagar o brilho de sua franqueza e presença nos últimos concertos que realizou na Espanha, em 2022.

Em uma entrevista para a Vogue francesa em 2016, Birkin diz: "Nunca nos ocorreu que Je T'aime... se tornaria um símbolo de liberdade em todo o mundo. As pessoas a escutavam em segredo, da Espanha à Argentina. O Papa a proibiu, a BBC também e, na Itália, o chefe da Phonogram [braço da Philips que lançou o single] foi preso. Eu estava fazendo outro filme ruim em Oxford e todos os dias víamos Je t'aime... moi non plus subindo nas paradas. Foi uma loucura."

Quanto à morte, disse, "todos temos um pouco de medo quando a sentimos se aproximando. A ideia é tão distante, tão abstrata. Temos dificuldade em imaginá-la. Nos últimos três anos, cheguei perto dela duas vezes e, surpreendentemente, não entrei em pânico. Eu estava com mais medo de não ter tempo de dizer o que queria dizer, de deixar as coisas em ordem, de ser perdoada..."

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