Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto
Descrição de chapéu América Latina

Indianos espanhóis e o sonho das Américas

Ou: de quando um quarto da população espanhola foi buscar fortuna no Novo Mundo

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Quando me mudei pra Barcelona, muitas lunas atrás, passei algum tempo sem entender o bar da esquina do lado de casa.

Chamado de "taverna de los indianos", o local, pra minha perplexidade de guiri (gringa) ignorante recém-chegada, não servia comida indiana.

Em seu lugar, uma simpática trupe de peruanos me recebia com "tapitas" tipicamente espanholas (muito boas, por sinal) e uma carta de vinhos locais.

Não me ocorreu perguntar o porquê dessa aparente incongruência. Jornalista despistada, vinho demasiado distrax, coisas da vida.

Mas o enigma viria a se solucionar suave y espontaneamente durante uma conversa casual na casa dos sogros.

Meu sogro, canário natural da ilha de Gran Canária, recordava histórias de sua infância, criado pelos avós num pueblo quasi-rural chamado Casa Santa.

Correção: mais criado pela avó.

-- Mi abuelo esteve pelo menos uns 15 anos indo e vindo das Américas, principalmente de Cuba --, lembra. A primeira vez, foi a Cuba em um barco a vela para trabalhar em uma plantação de cana.

-- Negros e brancos bebiam águas de porrones distintos e estavam separados. Quando se juntavam, havia pelea (briga). Los machetes para cortar caña... às vezes alguém aparecia degolado.

-- Cada vez que meu avô voltava de viagem, fazia um filho. E ficava às vezes dois, três anos antes de partir de novo. Muitos naquela época faziam isso, iam em grupo. E os que voltavam enriquecidos eram chamados de indianos: os que tinham regressado das Índias.

Daí soube: indianos, aqui, é como popularmente se chamam os emigrantes espanhóis que foram "fazer as Américas" -- aka Índias Ocidentais -- em busca de riquezas em países como Cuba, Argentina e Porto Rico, sobretudo entre os séculos 19 e 20.

Entre as duas últimas décadas do século 19 e 1959, quase cinco milhões de espanhóis se mandaram para o Novo Continente -- o equivalente a um quarto da população do país --, empurrados pela pobreza e pela promessa de novas oportunidades.

O avô do meu sogro foi um desses, embora, até onde eu saiba, não tenha feito grande fortuna. "Os indianos", lembra, "quando voltavam da América, vinham de branco, vestidos com botas e polainas, símbolos de status".

multidão de pessoas vestidas de branco festejam em uma praça pública entre nuvens de talco
Festa do carnaval dos Indianos em La Palma, nas Ilhas Canárias - Prefeitura de Santa Cruz de La Palma / Divulgação

De suas longas viagens, os indianos traziam consigo chapéus panamá, puros cubanos e muitas riquezas, mas também conhecimentos sobre últimas tendências e práticas comerciais e industriais, que usariam para turbinar a indústria local, a construção de ferrovias, a urbanização, infraestrutura, cultura.

Muitos conterrâneos os viam como ídolos; outros os criticavam. Mas é fato que, historicamente, os indianos aceleraram a prosperidade do país.

Alguns -- não todos -- fizeram fortuna com navios negreiros. Essa parte obscura da história indiana é abordada, por exemplo, na reportagem da BBC The Complicated Legacy of Spain's super-rich 'indianos' (O complicado legado dos espanhóis 'indianos' super ricos).

São remanescentes dessa época de "ouro" indiana as villas ou casarões que se ergueram em toda a Espanha com os lucros d'além-mar, adornados com muito rococó de neo-rico, inspirados na última moda das arquiteturas francesa e americana e com alguns detalhes que recordam a arquitetura mudéjar (de influência muçulmana).

É comum encontrar essas casas históricas em pueblecitos remotos ou regiões tão diversas como Galícia, Astúrias, País Basco e até aqui na Costa Brava, no povoado próximo a Barcelona onde vivo hoje em dia.

Meu namô mesmo tem um punhado de amigos cuja família conta com indianos entre os antepassados. Aqui, é comum identificar as casas indianas pela fachada portentosa, pintada de cores vivas, e sinalizada com pelo menos uma palmeira imperial no jardim da frente -- espécie não-nativa, isto é, ostensivamente importadis, que os indianos adoravam ter no quintal.


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O CARNAVAL DOS INDIANOS: A FESTA DO TALCO

Quem quiser mergulhar nessa tradição histórica pode vir pras Canárias no Carnaval e conferir a famosa festa dos Indianos em Santa Cruz de La Palma.

Na segunda-feira de Carnaval, uma multidão vestida de branco se reúne ao som de músicas com influência caribenha.

Encenam o que seria o desembarque dos indianos, a chegada dos viajantes depois de fazer fortuna na América.

Bailam entre nuvens de talco [aye, a rinite que eu num tenho], alusão ao costume antigo de empoar-se pra parecer mais alvo, ou, segundo outras fontes, referência à sociedade secreta dos ñáñigos cubanos: é o carnaval de los indianos, um dos eventos estrela do famoso carnaval das Ilhas Canárias.

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Bom, se os indianos são os egressos das Américas, como se chamam então os indianos da Índia em castelhano?

Ahá.

Em español, são indias e indios.

Este vocábulo (indio), por sua vez, não é em geral considerado adequado para se referir aos indígenas, ou seja, povos nativos de determinado lugar. Pelo menos em parte da América Latina, o termo indio tem uma conotação negativa, por impreciso e por, de certa forma, carregar consigo o olhar colonizador, generalizador e inferiorizador.

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