Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto
Descrição de chapéu clima mudança climática

Crise do azeite espanhol pode levar a escassez em 2024

Enquanto isso, em casa, vamos negociando o racionamento

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Quando faço as malas pra visitar família e amigos fora da Espanha, um item nunca pode faltar entre calcinhas e meias: azeite de oliva. Quando sobra um espaço, uma garrafa de Rioja e um jamón.

Desde a Antiguidade, essa maravilha verde-dourada, rica em polifenóis e outros micronutrientes mágicos, enaltecida por seu potencial poder antioxidante, antiinflamatório e cardioprotetor e ícone da dieta mediterrânea, é conhecida cá dos oceanos europeus como ouro líquido.

Recentemente, porém, o mítico apodo (apelido) vem ganhando outra razão de ser.

A Espanha, líder mundial de produção e exportação de azeite, enfrenta neste princípio de 2024 o terceiro ano consecutivo de más colheitas, devido às contínuas secas e temperaturas recorde na península.

É o pior cenário em mais de quatro décadas, com reflexos dramáticos nos preços.

A alta no valor desse item imprescindível da cesta básica espanhola já soma 164% desde 2021, quando começaram as secas pra valer. Atualmente, o litro supera os 10 euros (R$ 53) em média, o dobro do valor base de apenas um ano atrás.

Isso levou a uma novidade recente nos supermercados: alarme nas garrafas mais caras para prevenir furtos. Azeite tá virando vinho de luxo.

Estima-se que, em 2024, o estoque entressafras, crucial para regular o mercado, poderá tocar um fundo de poço sem precedentes.

Com isso, tem gente já vaticinando uma espécie de apocalipse do azeite pra meados do segundo semestre, quando o produto poderia realmente desaparecer das prateleiras.

RACIONAMENTO

Com a alta de preços, as vendas domésticas caíram. Segundo a Associação Nacional da Indústria Envasadora e Refinadora de Azeites Comerciais (Anierac), a queda nas vendas da versão extravirgem chegou a quase 40% na última colheita (de outubro a dezembro, principalmente) em relação ao mesmo período do ano anterior.

Muitos consumidores vêm passando do extravirgem, de melhor qualidade e menor acidez, para o azeite virgem, de uma categoria ligeiramente inferior, ou outros óleos refinados, deixando o de oliva para parcimonioso uso en crudo.

Com isso, outro fenômeno colateral vem acontecendo, como nota Jordi Pascual, responsável pela divisão de azeite da Unió de Pagesos (União de Camponeses, principal sindicato agrícola da Catalunha), ao La Vanguardia: o encarecimento do óleo refinado.

"Se o extravirgem é substituído por um refinado, este aumenta de preço porque tem mais demanda, e se dá a situação de que um azeite (de oliva) de qualidade custa o mesmo que um refinado", diz.

A incerteza em torno do futuro do azeite de oliva também tem gerado um discreto efeito à la papel higiênico em época de pandemia. Em outras palabras: já tem gente estocando por medo de que falte.

"O consumidor teme ficar sem azeite (...) e compra em maior quantidade", opina Enric Dalmau, presidente da DOP Les Garrigues, uma das principais regiões produtoras de azeite da Catalunha, conhecida pela variedade arbequina, de sabor suave e afrutado.

***

Quando cheguei na Espanha, muitos anos atrás, fui logo me enturmando com os locais e compareci numa festinha local. Foi minha primeira experiência social transcendental acidental com o tema Azeite de Oliva.

Uma amiga preparava o icônico pan tumaca (pa amb tomàquet, vulgo pão com tomate, que, pra quem não sabe, é um acompanhamento catalão e espanhol onipresente em bares, restaurantes e veladas mil).

Primeiro choque: ela esfregava os tomates (da modalidade "de penjar", por sinal bem cara -- e cada vez mais, graças à crise climática) sobre as fatias de pão e jogava fora os frutos esmilinguidos.

-- Que cê tá fazendo! -- gente, fui criada por uma mãe que veio do campo e às vezes só tinha arroz ou repolho pra comer, ou nem isso. Tem essa de jogar comida no lixo, não.

-- Susssana, esse tomate a gente não come -- me explicou, amável-paciente.

Segundo choque, sem vaselina: a mesma amiga catalã temperando a salada e jogando o que me pareceu meio litro de azeite de oliva sobre as folhas.

-- Pero QUE CE TÁ FAZENDO, MIGA! -- já virou meu bordão, ces tão vendo.

-- Susssana -- amável, mas firme: -- Relaxa, o azeite é bom pra saúde!!

Fast forward muitos anos e hoje em dia eu até esfrego tomate no pão (mas uso o que sobra) e até sou mais liberal com o azeite. Digo, liberal, mas com parcimônia.

***

Na minha casa, em um pueblo às margens do Mediterrâneo catalão, eu e o namorildo nativo temos nossas divergências domésticas a respeito da carestia do azeite.

Eu sou a favor do racionamento inteligente; ele, de abrir mão de outras coisas, mas jamás do uso liberal del aceite de lo bueno, com que ele banha BANHA tudo o que consome diariamente, de pão a carnes, saladas, sopas e pratos de qualquer espécie.

Como, de resto, faz muita gente espanholis que conheço.

Outro dia quase deu divórcio quando eu confessei:

-- Amor, eu tenho misturado óleo de amendoim com o azeite de oliva pra cozinhar.

-- U Q!

-- ... mas se você nem percebeu a diferença! Deixo o azeite bom pra finalizar os pratos... -- [insert crescente expressão de choque do interlocutor]

Certeza que acabo de matar algum espanhol do corazón. Mas é que num tem bolsillo que aguente. Eles não sabem que, pra um brasileiro, azeite de oliva não é e nunca foi cesta básica...

(continua... / to be continued / continuará...)

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