Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Quando uma cebola não é uma cebola

Em terra de abuelos e butecos, não há tema tão pequeno que não mereça a sua própria contenda (e declaração de amor)

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Barcelona (Espanha)

A contenda vive no coração insone dos contendores.

No caso, estou falando da cebola, mesmo.

Não existe motivo pequeno o suficiente pra ser afastado com um gesto de mão num balcão de bar.

Eu tentei -- mas já era tarde.

A minha pergunta inocente iniciou a confrontação:

– O que é isso aqui em cima do queijo?

Apontei pra uma torradinha, demasiado frágil pro bloco de queijo de cabra que se equilibrava sobre ela, detrás da vitrina onde se enfileiravam "montaditos". Encarapitado sobre o queijo, um montículo marrom escuro.

Que eu imaginei que seria uma geleia ou sei lá. Tava caçando assunto, gente.

– Cebola confitada –o cara à minha esquerda se adiantou ao dono do bar, que já abria a boca pra me responder, de má vontade.

Tudo nesse cara-ao-lado me transmitia o conforto do habituê, senão daquele bar, de bares vários: o corpanzil esparramado sobre o balcão de madeira caramelo meio grudento, meio envernizado; a taça de vinho com a garrafa do lado, um bom vinho, por sinal, com uma "tapa" pegando vento; e a intromissão em conversa alheia.

O bar era simples, uma dessas bodegas de bairro que ainda sobrevivem em Barcelona. Tão simples, aliás, quanto cheia de estrelinhas em guias de viagem. Talvez porque um dia um chef Michelin disse que o lugar era massa e um de seus preferidos no mundo.

NO MUNDO, gente.

Daí eu ali, ou não.

– Não é confitada, é CA RA ME LI ZA DA – corrigiu, o dono, jubiloso, encarando o freguês. Irritado comigo, com ele, contigo e com a poha da cebola.

Eu deveria ter parado, mas não.

– E qual é a diferença?

Os dois se entreolharam. O do meu lado disparou, tipo participante de quiz em programa do Silvio Santos:

– A caramelizada leva açúcar, tem que estar muito caramelizada mesmo e além disso depois de uns xx minutos tem que ser reduzida com vinho ou cerveja ou o álcool que você quiser. Eu faço com vinho do porto.

Sublinhou essa última frase encarando o dono do bar, desafiador.

A essa altura, eu já tinha me convertido numa mera observadora. Amigos e namorildos sempre se queixaram: eu sou perita em botar lenha no cofrinho e depois ficar só de camarote, como se não fosse comigo.

Antes de seguir com esse relato assaz emocionante, gostaria de observar que (((ninguém me falou, mas pressinto, e outros espanhóis de diferentes cepas me disseram))) que a cebola é uma instituição espanhola.

Não com maiúsculas, como a Paella ou o Flamenco, a Tortilla de Patatas ou o Julio Iglesias (hein?).

E, sim, com letras pequenas e humildes e transversais, dessas que entram em cada casa e cada pueblo, em cada sofrito, sanfaina e tortilla; que se multiplicam em versões apócrifas e receitas várias, e das quais cada pessoa bicho planta abuela sobre la Península Ibérica sente ter direito natural de se apropriar.

(Influência árabe, mesopotâmica ou neandertal, claro, vamos pular a parte de que a cebola é um dos alimentos mais ubíquos e antigos do mundo)

O dono-da-bodega voltou a me encarar e, hombresplaining, acentuou bem as palavras:

– Minha cebola confitada não leva nada -- reparem no pronome possessivo. – Só uma pizca de sal e muita paciência. Os açúcares próprios da cebola são suficientes. O segredo é esse: pa ci ên-cia.

E, sem alinhavar mais palavrinha ou palavrão, assentou a polêmica torradinha sobre um pratinho branco e botou diante de mim.

Estava boa, estava incrível.

***
Eu deixo aqui um vídeo no Instagram em que eu explico como se pode preparar a cebola confitada, as diferenças em relação à caramelizada e um truquinho pra acelerar o processo – que, de outra forma, de acordo com alguns chefs e pseudochefs, poderia levar até 45 minutos.

(Ps: tem gente que inverte os nomes, e gente que jura que são a mesma coisa. O que importa é fazer, provar e amar.)

Como o boteco acima, a cebola caramelizada ou confitada é tão simples quanto genial, e serve pra acompanhar tudo e elevar qualquer prato, de torradinhas a carnes, tortillas, peixes, verduras, purês, hummus, queijos, foie gras, sopas, cremes, vida chata etc.


Por último, como às vezes faço em temas culinários, recorri ao meu sogro español-catalán pra esclarecimentos e inspiração. Que (como todos noizes) num é dono da verdade, mas cozinha bem à beça. Transcrevo, traduzido e na íntegra, o que ele me disse.

"Minhas cebolas:

A primeira coisa é o objetivo final: o corte da cebola é importante. Corte em juliana para cebolas, carnes, peixes, corte bem pequeno para molhos de tomate, arroz etc.

Segundo: azeite de oliva generoso você sempre pode retirar o excesso no final do cozimento e aquecer devagar ou bem devagar. Não tem problema que fique tampada (a panela) no início até que a cebola perca a textura. Então, destapada e por um bom tempo.

Terceiro: O final tem dois pontos possíveis. Um quando as cebolas ficam transparentes, para poder adicionar carnes ou outras coisas.

Ou você pode continuar até obter uma coloração tostada. Gosto muito desse ponto para molhos e bolonhesa. É o momento em que você pode adicionar um pouco de vinho ou um outro álcool, o que quiser pra dar um sabor -- o álcool queima e a cebola fica caramelizada. Nunca coloco açúcar, a própria cebola já tem seus carboidratos para caramelizar.

Quarto: em qualquer um dos dois pontos você pode adicionar tomate ou outros vegetais para brincar com os sabores que más te apetezcan.

Resumindo, não existe guia... paciência, e o ponto final você mesma escolhe.

Besotes,"

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