Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública Enem Fies

O que você faria se fosse um(a) cientista?

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Karla Esquerre

Fundadora do grupo de pesquisa Gamma - UFBA, cofundadora do R-Ladies Salvador e do AI Inclusive Salvador, além de coordenadora do projetos Meninas na Ciência de Dados e Ciência de Dados na Educação Pública; possui experiência em pós-doutorado na Hokkaido University e na University of California San Diego; é professora da Universidade Federal da Bahia e também professora visitante da Stanford University.

O crescente uso de informações para solucionar diversas questões e desafios tem transformado rapidamente a sociedade contemporânea. Esse contexto é marcado por problemas complexos gerados com o avanço da Tecnologia da Informação e Comunicação, notícias falsas (fake news), grandes volumes de dados (big data) e a Internet das Coisas (IoT).

Infelizmente, algoritmos e tecnologias tendem a apresentar vieses sociais, raciais e/ou de gênero em sua concepção, favorecendo apenas certas camadas privilegiadas da sociedade. Tal cenário amplia a importância de desenvolver mecanismos e oportunidades para apoiar a formação de cidadãos capazes de compreender, por exemplo, como as empresas acessam seus dados, como são criados modelos que antecipam seus desejos e como os algoritmos podem afetar suas decisões e senso crítico.

Para reconhecer problemas e aproveitar oportunidades, é relevante contar com soluções personalizadas e tomadas de decisão embasadas nos avanços da ciência, a fim de contribuir para aprimorar a qualidade de vida. Ao mesmo tempo, é importante que os cidadãos compreendam o universo científico sob diferentes aspectos, percebam a interdisciplinaridade de soluções para problemas cotidianos, explorem e abstraiam as diversas realidades e cenários que impactam diretamente ou indiretamente em suas vidas e comunidades.

Karla Esquerre é professora da Universidade Federal da Bahia e também professora visitante da Stanford University. - Divulgação

Com o propósito de ajudar nas transformações sociais que almejamos, o Programa Ciência de Dados na Educação Pública foi lançado em 2020 como uma expansão do Projeto Meninas na Ciência de Dados, para englobar estudantes dos ensinos fundamental 2 e médio de escolas públicas de Salvador, Bahia.

O programa foi idealizado e liderado por mim e pelo grupo de pesquisa Gamma da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e conta com o apoio de professores, estudantes e profissionais da UFBA, instituições parceiras e vários grupos de pesquisa, formando uma equipe multidisciplinar organizada para promover o desenvolvimento e discussões em cinco grandes frentes temáticas: ciência de dados, inteligência artificial, pensamento científico, protagonismo social, racial e de gênero.

Apesar de dois anos das atividades terem ocorrido no formato online devido à pandemia de Covid-19, mais de 500 estudantes, muitos dos quais provenientes de origens desfavorecidas, tiveram seu primeiro contato com a área de ciência de dados, e 50% desse grupo participou de aulas para aprofundar seus conhecimentos nessa temática.

O Programa Ciência de Dados na Educação Pública tem sido uma importante iniciativa para promover habilidades e competências em ciência de dados entre estudantes de escolas públicas, interseccionando com inteligência artificial e protagonismos social, racial e de gênero.

Os anseios dos estudantes podem ser observados nas respostas à pergunta "O que você faria se fosse um(a) cientista?", com destaque ao desejo em desenvolver ciência nas favelas e na cura de doenças que afetam a mente e o corpo.

Imagem com os alunos extraída do Relatório Executivo do Programa Ciência de Dados na Educação Pública, referente ao encontro de encerramento das atividades do ano de 2022 - Divulgação

Os estudantes de graduação e pós-graduação que atuam no programa têm a oportunidade de articular prática de ensino, pesquisa e extensão, contribuindo para o desenvolvimento da ciência e tecnologia em favor da sociedade. A abordagem do programa, que não dissocia teoria e prática, tem contribuído para fortalecer a autoestima dos estudantes e incentivá-los a buscar soluções inovadoras para os problemas enfrentados pela sociedade contemporânea.

As ações previstas promoveram a produção de materiais e conteúdos específicos para compartilhamento de temas relevantes como ciência de dados, pautas sociais, raciais e de gênero, inteligência artificial e práticas investigativas. A página do programa foi construída com o objetivo de se tornar uma referência para consulta de materiais, e o site (re)Conhecendo Salvador conta com cerca de 50 repositórios hospedados na plataforma do GitHub.

Além disso, foram elaborados outros materiais de apoio para professores. O livro "Diversidade em sala de aula: por uma educação antirracista" foi criado para apoiar os professores no enfrentamento do racismo, abordando as relações raciais, as segregações e opressões históricas, sociais, políticas e econômicas. Já o livro "Introdução à ciência de dados" explora situações-problema relacionadas a programas de transferência de renda, CadÚnico, programa Bolsa Família, dados de educação, como o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), dados esportivos, dados sobre indicadores de segurança pública e suas estruturas administrativas, câncer de mama, dados eleitorais, pandemia do coronavírus (Covid-19) e resíduos sólidos urbanos, todos abordados com uma perspectiva de Ciência de Dados.

Ao longo de mais de 20 anos de trabalho com letramento em dados, tanto em contextos universitários como na educação básica, percebo que a aquisição de habilidades em ciência de dados é um desafio que vai além do senso comum. É preciso compreender os mecanismos que envolvem a produção dos dados, seus objetivos, interesses e as incertezas que permeiam sua representação. Além disso, esse desafio é agravado pelo contexto atual, no qual a produção de dados é cada vez mais rápida e demanda mais recursos para sua preservação e comunicação.

Esse aprofundamento da realidade também traz à tona o debate sobre o uso de tecnologias digitais que apresentam desafios em termos de privacidade, inclusão e representatividade de grupos. Nesse sentido, é fundamental que educadores e estudantes se envolvam em discussões críticas e aprofundadas sobre ciência de dados e suas implicações para a sociedade.

Os desafios atuais na educação são enormes e as dificuldades no ensino se sobrepõem. Sem os estímulos necessários quanto ao letramento em dados para a formação cidadã, nossos jovens subutilizam suas habilidades criativas, de raciocínio lógico, e de resolução de problemas. E quando consideramos as limitações impostas pelo sexismo e o racismo estrutural, a falta de oportunidades em áreas de STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática) se intensifica, especialmente para jovens de origens desfavorecidas.

A abordagem da ciência de dados sob diferentes aspectos fortaleceu os estudantes quanto à compreensão da necessidade de se olhar para os problemas cotidianos de maneira interdisciplinar. Favoreceu também a ampliação da sua visão crítica a respeito da cidade e da sociedade, assim como promoveu sua capacidade de exploração e abstração de diversas realidades e o respeito às diferenças. Novas trajetórias passaram a serem sonhadas e construídas.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Karla Esquerre foi "Andar com Fé", de Gilberto Gil.

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