Thaís Nicoleti

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Coisas que deixamos para trás em nome da modernidade

Tecnologia aplicada à escrita padroniza forma e conteúdo

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Logotipo da OpenAI, empresa por trás do ChatGPT - AFP

Todo o mundo já ouviu algum professor de redação dizer que ler é o melhor meio de aprender a escrever. Ler, ler e ler. Há pouco tempo, bilhões de dólares foram gastos para que um aplicativo de inteligência artificial fizesse essa lição de casa, aparentemente tão simples e prazerosa. Ao que tudo indica, deu certo. Cessem todas as aulas de escrita, pois o ChatGPT está apto a produzir qualquer tipo de texto, inclusive poesias e roteiros de cinema ou de TV.

O aplicativo de inteligência artificial põe a criação de um texto ao alcance de qualquer pessoa, substituindo um aprendizado às vezes dificultoso pelo produto acabado. Na sua condição de robô, o ChatGPT "leu" bilhões de textos com o objetivo de aprender a escrever, coisa que um ser humano, tomado em sua individualidade, não seria capaz de fazer.

No ambiente escolar, a novidade vem causando certa apreensão, pois a prática de elaborar textos tem sido o principal meio de avaliação dos estudantes, e as teses universitárias, ainda que sejam lidas por poucas pessoas, funcionam como uma espécie de selo de garantia da instituição, servindo de lastro ao título acadêmico. Como manter esse status no caso de os robôs se tornarem os autores (ou coautores) desses trabalhos? Bem, já existem softwares capazes de detectar o uso de inteligência artificial na elaboração de um texto, o que permite que o estudante use um robô para escrever, e o professor use outro para reconhecer o primeiro robô. Tudo leva a crer que haverá espaço para falhas nesse processo e para contendas jurídicas sobre autoria, falsidade ideológica, plágio e questões afins.

De resto, em vez de empenhar esforços na repressão à burla tão generosamente propiciada pelos modernos aplicativos, talvez fosse mais útil refletir sobre os ganhos e as perdas que os avanços tecnológicos nos trazem e sobre o modo como isso afeta (ou representa) o mundo em que vivemos. Uma coisa é delegar a outrem uma tarefa que não queremos realizar, embora sua execução esteja a nosso alcance; outra coisa é abrir mão de um saber.

Na prática, muitos estudantes já perderam, por exemplo, a habilidade de escrever manualmente. É fácil verificar isso na leitura de redações de concursos públicos, de vestibulares ou do Enem. Professores que executam esse tipo de trabalho deparam-se frequentemente não só com garranchos quase ilegíveis como também com o total desconhecimento dos princípios da divisão silábica.

Há relatos (muitos) de que mesmo alunos que escrevem bem ou razoavelmente bem não têm a menor noção do que fazer quando a palavra precisa ser dividida. Citam Aristóteles, mas, se o nome estiver no fim da linha, é sem cerimônia mesmo que o "s" pode cair sozinho para a linha de baixo. Isso era coisa que se aprendia no período de alfabetização e talvez já não se aprenda. Fato é que, ao escrever no computador ou no telefone celular, o problema simplesmente não existe. O mesmo se aplica às garatujas, cujo suposto prestígio não ultrapassava os receituários médicos, que obrigavam os farmacêuticos a decifrá-los.

Em texto muito conhecido, Umberto Eco lamentava a "tragédia" de terem os estudantes italianos (ou boa parte deles) perdido a habilidade de escrever à mão. Segundo ele, o problema já seria bem anterior ao domínio dos computadores em nossa vida. Diz o autor: "Minha geração foi educada na boa caligrafia, e passamos os primeiros meses da escola elementar aprendendo a fazer os traços das letras. Depois, o exercício passou a ser estúpido e repressor, mas nos ensinou a manter os pulsos firmes enquanto usávamos nossas canetas para formar letras redondas e cheias de um lado e finas do outro".

Ele se refere ao uso da caneta-tinteiro, depois substituída pela esferográfica, e, em seguida, trata das manchas que uma e outra podiam produzir caso seu manuseio não fosse firme e preciso. "A arte de escrever à mão nos ensina a controlar nossas mãos e encoraja a coordenação entre a mão e o olho", diz. Nos dias de hoje, é raro que se use a letra cursiva, e até mesmo a assinatura, que expressa o traço pessoal, já vem sendo substituída por versões eletrônicas. Os cursos de caligrafia – em geral destinados à redação de convites de casamento ou diplomas – ainda existem, mas como um resquício de outros tempos.


Se a caligrafia parece inútil, que dizer da memória? A escola abandonou o exercício da memorização, visto como "estúpido e repressor", se é que podemos tomar de empréstimo as palavras de Eco. Sim, restringir o aprendizado à memorização de fatos, datas, poemas ou tabuada parece mesmo algo tolo, que teria de ser superado. Isso não quer dizer, porém, que a memória não tenha seu valor, mas a verdade é que a tecnologia a alijou aos buscadores da internet. Basta lembrar uma palavra-chave e jogá-la no Google (ou similar) para que se apresentem diante de nossos olhos as informações necessárias. O celular é nosso companheiro até mesmo em conversas informais, sendo uma espécie de memória que carregamos no bolso. Pode-se argumentar que, diante da quantidade de informações que recebemos diariamente, seria impossível reter tudo. Retemos o mínimo.

Agora, estamos prestes a abandonar nossa habilidade de escrever textos. A inteligência artificial é, de fato, competente, mas seu produto não tem individualidade. A escrita passa, então, a ter certa neutralidade. É bom lembrar que, na elaboração do ChatGPT, por exemplo, foram usados seres humanos para fazer o serviço (mal pago) de rastrear discursos considerados impróprios ou moralmente incorretos (racistas, preconceituosos, xenófobos, incitadores de algum tipo de crime etc.) e retirá-los do conjunto de dados que constitui a plataforma de aprendizado do sistema. Dessa forma, aparentemente, o aplicativo não produz os chamados "discursos de ódio". Isso, se parece bom, também nos lembra de que, por trás de uma inteligência artificial, há inteligências humanas tomando decisões.

Essa talvez não seja, todavia, uma preocupação do nosso tempo. Um suposto consenso em torno da tese de que é possível purificar a humanidade por meio de uma espécie de eugenia linguística nos leva a aceitar com naturalidade que obras literárias do passado, cujos autores estão mortos, possam ser corrigidas, tendo passagens suprimidas ou termos substituídos, como ocorreu recentemente com livros da inglesa Agatha Christie, entre outros.

No século passado, que nem parece tão distante, soaria absurda a ideia de adulterar uma obra sob qualquer pretexto. Hoje, o mercado estimula isso, de modo que os herdeiros da escritora são os maiores interessados na "correção". Isso talvez nos mostre que a linguagem está deixando de exprimir a individualidade – com seus erros e acertos, com sua temporalidade e suas eventuais genialidades – para enquadrar-se em um padrão moral.

Diante disso, parece irrelevante discutir os aspectos éticos do uso do ChatGPT na elaboração de trabalhos acadêmicos ou de roteiros, notícias de jornal etc. O que importa é escrever "o certo" – e a tecnologia pode ajudar a encontrar não só a forma ideal como as ideias acertadas. Ao abrirmos mão da habilidade de escrever, que requer treino e algum trabalho, abrimos mão também de nossa expressão individual. Vale a pena?

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