Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França

O uso do tempo e a desigualdade de gênero

Saber como as pessoas usam o tempo pode ser eficaz no combate às desigualdades de gênero

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Ana Luiza de Holanda Barbosa

É doutora em economia pela FGV, pesquisadora na diretoria de estudos e políticas sociais do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e vice-presidente da Sociedade da Economia da Família e do Gênero

O tempo é um recurso universal, escasso e não renovável. Uma vez que você o usa (ou gasta), não há como tê-lo de volta. Diferente da renda, da riqueza e do consumo, todos nós nos defrontamos com o mesmo número de horas em um dia, de dias em um mês e de meses em um ano, ou seja, com a mesma dotação de tempo, durante o qual trabalhamos, dormimos, comemos, nos divertimos, e, não menos importante, cuidamos da casa e de alguém (ou alguéns). Quanto tempo nos dedicamos a cada uma destas atividades e por que escolhemos realizá-las?

Ana é uma mulher branca de cabelos loiros e cacheados, na altura dos ombros. Ela veste uma blusa estampada.
Ana Luiza de Holanda Barbosa é doutora em economia pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) e pesquisadora na diretoria de estudos e políticas sociais do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). É também vice-presidente da Sociedade da Economia da Família e do Gênero (GeFam) - Divulgação

Em seu artigo seminal, "A theory of allocation of time" (1965), Gary Becker foi quem primeiro formalizou a ideia de que o tempo tem um valor econômico. O poder da teoria de Becker vem das implicações do fato de que, enquanto pagamos com os mesmos preços (valores) de bens e serviços produzidos no mercado, nossos valores do tempo variam de forma considerável. Preferências, normas sociais e institucionais, aspectos culturais e regionais, características individuais (raça, gênero, idade) além, claro, da restrição de renda, geram uma singularidade na forma como cada pessoa aloca e valoriza o tempo.

Saber como mulheres e homens alocam o tempo é essencial para a análise de desigualdades de gênero, na medida em que suas atividades na esfera privada (tarefas domésticas, cuidados e lazer, por exemplo) têm implicações na extensão e na natureza da sua participação na esfera pública (trabalho remunerado) e vice-versa.

Ainda que avanços importantes em direção à igualdade de gênero no mercado de trabalho tenham sido alcançados, a distribuição extremamente desigual do tempo com trabalho em afazeres e cuidados domésticos é persistente no Brasil e na maioria dos países do mundo.

Em coluna publicada recentemente nesta mesma Folha, a economista Laura Müller Machado mostra estatísticas relevantes para casais heterossexuais em que ambos trabalham, entre 25 e 44 anos no Brasil. A partir da pesquisa domiciliar PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) do IBGE, os dados mostram que, em 2022, as mulheres dedicaram às tarefas domésticas o dobro do tempo (19 horas semanais) do que os homens (11 horas), uma diferença de um dia de trabalho no mercado (8 horas). No mercado, as mulheres trabalham 39 horas em trabalho econômico, enquanto os homens 44 horas. Considerando ambos os trabalhos, as mulheres (58 horas semanais) trabalham em média 6% a mais do que os homens (55 horas).

É razoável esperar que gerenciar dois trabalhos, com atividades de naturezas diferentes, envolva algum nível de complexidade. E não surpreende que essa divisão extremamente desigual tenha efeitos de sobrecarga de trabalho, emocional, stress e sensação de injustiça, em especial, nas mulheres casadas mais jovens.

Jornadas de trabalhos excessivas resultam na chamada pobreza do tempo, que é a falta de tempo livre, tempo para o chamado tempo pessoal (dormir, comer, cuidados e higiene pessoal) e o lazer, com impactos importantes nas oportunidades econômicas e na saúde física e mental, sobretudo das mulheres.

E o lazer? É atividade complexa de definir na medida em que as pessoas têm oportunidades e preferências diferentes. Na literatura sobre o uso do tempo costuma usar o seguinte conceito. O lazer é essencialmente tudo aquilo que não temos que fazer, que nós desfrutamos, e que não podemos terceirizar (ou seja, algo no qual nós devemos estar presentes e nós mesmos fazermos). São inúmeros os exemplos de atividades de lazer, a saber: assistir TV, a prática de esportes e exercícios, leitura, eventos culturais, entre outras.

As chamadas Pesquisas de Uso do Tempo coletam informações de como os indivíduos alocam o seu tempo sobre as atividades ao longo de um determinado período (geralmente, um dia) e representam uma fonte única e rica da rotina diária das pessoas. Uma das principais pesquisas do tipo é a American Time Use Survey (ATUS), que cobre mais de quatrocentas categorias detalhadas de uso do tempo.

A ausência de uma pesquisa de uso do tempo no Brasil nos impede de investigar de forma precisa como os brasileiros alocam o seu tempo, em especial o tempo livre e o de lazer. O que se sabe sobre o uso do tempo está relacionado apenas com o trabalho no mercado e o trabalho doméstico. E em relação a este último, não é possível distinguir o tempo dedicado a afazeres domésticos do tempo dedicado ao trabalho de cuidados, o que só reforça sua pouca visibilidade e subvalorização.

Os jovens de hoje estão mais conscientes de que excesso de trabalho pode gerar danos à saúde e à qualidade de vida, e que é necessário traçar uma linha clara entre o trabalho e o tempo livre, sem renunciar um pelo outro. A partir de 2021, começaram a surgir os chamados movimentos antitrabalho, em que a principal proposta é a da busca de um maior equilíbrio e tempo de qualidade dedicados ao bem-estar do indivíduo. Vale observar que, muito antes da pandemia, em 2016, a ativista, poeta, mãe e mulher negra Tricia Hersey fundou o The Nap Ministry (O Ministério do Descanso) com a demanda do direito a descansar e ao lazer das mulheres negras. Para Tricia, "quando uma mulher negra propõe exercer o direito a descansar estamos diante de uma revolução."

A pesquisa de uso do tempo é uma ferramenta valiosa para compreender como as pessoas organizam suas vidas e seu impacto na sociedade. Ela pode capturar comportamentos não perceptíveis por pesquisas domiciliares tradicionais, que têm pouco alcance no universo intrafamiliar e na alocação do tempo das pessoas. A integração dessas pesquisas nas estatísticas oficiais nacionais traria subsídios importantes para as políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para melhorar as condições de vida, as oportunidades econômicas e o bem-estar dos mais vulneráveis e da população em geral.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Ana de Holanda Barbosa foi "Sossego" de Tim Maia.

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