Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

Vamos conversar sobre a Autonomia Universitária?

A autonomia das universidades a serviço da justiça social

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Alisson Santos

Doutorando em economia pela UFRGS, pesquisador assistente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e do Núcleo de Estudos Raciais do Insper

Depois do ataque da ditadura militar às universidades, tentando censurar qualquer pensamento divergente, a resposta dada pela Constituição Federal de 1988 permitiu assinalar um novo horizonte à democratização da sociedade brasileira. A liberdade de pensamento tem, nela, ambiente propicio à inovação em toda a sua amplitude, da tecnologia à filosofia.

Em reportagem do portal G1, intitulada "Concursos ‘fatiados’ em universidades federais prejudicam cumprimento de cotas para negros, diz pesquisa", o "Ministério da Educação afirmou que ‘atua em constante diálogo com as 69 universidades federais existentes no país’ e ressaltou que elas têm autonomia garantida pela Constituição".

O assunto havia sido publicado pela Folha anteriormente, com o texto "Universidades federais não cumprem cotas para negros em 74% dos concursos de servidores".

Alisson é um homem negro de cabelos curtos cacheados e pretos e olhos escuros. Ele usa óculos de grau, terno azul escuro com camisa social azul clara e gravata também azul clara
Doutorando em economia pela UFRGS e pesquisador assistente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e do Núcleo de Estudos Raciais do Insper - Divulgação

Para podermos contextualizar esse debate, vamos fazer algumas perguntas. Quanto de autonomia universitária há na realização de eleição de reitor a cada biênio? O quanto de autonomia há nas instituições federais de ensino para criarem cursos sem autorização do MEC? Quanto de autonomia universitária possuem as instituições para realizarem concursos sem a autorização do Ministério da Gestão e da Inovação (MGI)? O quanto de autonomia há para fracionar licitações? Quanto de autonomia existe às instituições federais de ensino para criarem seus próprios cargos?

Parecem estranhas essas perguntas, porém, autonomia não se confunde com soberania e independência do Estado. Mas por que o MEC alega que a baixa eficácia da Lei nº 12.990/2014 (lei voltada para reservar vagas para negros em concursos públicos) se deve à autonomia universitária? A autonomia universitária pode servir de escudo para a não implementação de uma lei federal, seja ela qual for?

Então, há um argumento fora de lugar e não um lugar fora do argumento. Nesse caso, o argumento da autonomia universitária está sendo utilizado para encobrir burlas incompatíveis ao Estado Democrático de Direito.

Nós, negros e negras, queremos mais Estado Democrático de Direito, e não menos. Quando invadem os terreiros de religiões de matriz africana, temos menos Estado. Quando promovem o genocídio da juventude negra, temos menos Estado. Quando impedem que negras e negros ingressem no serviço público federal por conta de manobras que resultam na burla a lei, temos menos Estado.

Há algo de estranho no ar e não é com a autonomia universitária. Diante das evidências seguras trazidas pelo relatório "A implementação da Lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes", realizado por um grupo de pesquisadoras e pesquisadores e pelo Movimento Negro Unificado (MNU), as universidades, institutos federais, e todos os órgãos que se utilizaram do expediente da burla deveriam fazer um sincero pedido de desculpa à comunidade negra e à sociedade brasileira.

É imperdoável o que aconteceu; de onde esperávamos luz, veio a escuridão. De onde esperávamos a maior presença de pessoas negras, constatamos a ausência de reserva de vagas para os cargos efetivos nos editais de processos de seleção.

A universidade não pode dizer à comunidade negra que a Lei n° 12.990/2014 foi "lei para inglês ver". Para que isso não mais aconteça e para ter o direito à memória, precisamos saber, primeiro, o que motivou essa barreira à revelia do Estado Democrático de Direito. Precisamos ter acesso a todos os dados com a criação de uma comissão para saber a verdade em todos os órgãos.

A verdadeira autonomia universitária, aquela que defendemos, não impede que as universidades tomem essa decisão.

O segundo passo, utilizando-se também da autonomia universitária, seria fazer a verdadeira reparação do número de vagas do cargo efetivo não reservadas à população negra e à população PCD (Pessoa com Deficiência). O mesmo pau que bateu em Chico (a comunidade negra) também bateu em Francisco (os PCDs).

Continuamos confiantes no Estado Democrático de Direito e na Autonomia Universitária. Desejamos o pleno exercício da autonomia universitária, dentro do Estado Democrático de Direito.

O que não pode, e é imoral, é as universidades se esconderem por traz da autonomia universitária para atacar direitos que a comunidade negra lutou, por mais de 500 anos, para conquistar.

Esperamos que aquela luta travada em 1988, na Constituinte, não tenha sido em vão. Com a palavra, as universidades. Precisamos, agora, que elas estejam conosco pela continuidade das políticas de ação afirmativas, criando seus comitês de apoio. Ao mesmo tempo, estamos propondo um pacto pela reparação, nos moldes do que aconteceu na Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), utilizando como instrumento a autonomia universitária. A autonomia universitária a serviço da justiça social.

O editor Michael França pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Alisson Santos foi "A natureza das coisas", de Flávio José.

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