Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

Um Estado moralista, em vez de regulamentar, criminaliza

A criminalização de indivíduos envolvidos na prostituição demonstra o ranço moralista e paternalista do código penal

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Luiza Oliver

É advogada criminalista, mestre em direito penal pela Universidade de Nova York, conselheira estadual da Ordem dos Advogados do Brasil e sócia do escritório Toron Advogados

Precisamos repensar sobre os crimes relacionados à dignidade sexual, previstos no título VI, do Código Penal. São muitos os ranços moralistas, paternalistas e puritanos que ainda perduram na legislação penal brasileira.

É evidente que todo e qualquer ato que atente contra a liberdade, a dignidade e a integridade física e sexual de um indivíduo merece repreensão penal. Daí porque, por exemplo, o estupro, a violação sexual mediante fraude e o assédio sexual são corretamente tipificados como crime nos artigos 213, 215 e 216 do Código Penal.

Mas, deve o Estado interferir no mais? Faz sentido o Direito Penal tutelar meras imoralidades?

Apesar de a prostituição não ser, per se, um crime, o Código Penal brasileiro segue criminalizando condutas relacionadas aos agentes que a intermedeiam, como, por exemplo, i) a mediação para "servir a lasciva de outrem" (art 227, CP), ii) o favorecimento da prostituição (art. 228, CP), iii) a manutenção de casa de prostituição (art. 229, caput, CP) e iv) a obtenção proveito e lucros da prostituição alheia (art. 230, CP).

Ela é uma mulher de cabelos pretos curtos e olhos escuros, que usa uma blusa branca com mangas
É advogada criminalista, mestre em direito penal pela Universidade de Nova York, conselheira estadual da Ordem dos Advogados do Brasil e sócia do escritório Toron Advogados - Divulgação

Partindo-se do pressuposto de que os envolvidos nas condutas acima indicadas sejam indivíduos maiores de idade, com plena capacidade de entendimento e de autodeterminação, e não havendo violência, ameaça, ou qualquer tipo de constrangimento na liberdade de escolha deles, indaga-se: o que o direito penal tem com isso? Qual o bem jurídico que se pretende proteger com essas criminalizações?

Longe de se buscar a tutela da dignidade e da liberdade sexual do indivíduo, tais criminalizações têm como pano de fundo a defesa do pudor e da moralidade social, além de possuírem viés paternalista, na medida em que partem do pressuposto de que todos os indivíduos, apesar de plenamente capazes, precisam ser protegidos pelo Estado de suas próprias escolhas e atos.

Claro que podem existir casos em que a intermediação da atividade sexual alheia contenha abusos e viole a dignidade do indivíduo. Para esses casos, contudo —assim como para os demais casos de abuso envolvendo tanto as relações sexuais, como as relações de trabalho—, existem respostas penais mais adequadas e que independem da criminalização da intermediação em si.

Por exemplo, caso se verifique numa situação concreta violência ou grave ameaça para a realização do ato sexual, ou a submissão do indivíduo prostituído a trabalho forçado, a condições degradantes de trabalho, ou, ainda, a adoção de medidas que impeçam o seu pleno exercício da liberdade de escolha, o Código Penal já prevê tipos penais bastante rigorosos. É o caso do crime de estupro e do crime de redução do trabalhador à condição análoga a de escravo, cujas penas atingem 10 e oito anos de prisão, respectivamente.

O problema nesses casos, como parece evidente, não é a intermediação da atividade sexual alheia, mas sim a violação à integridade física e sexual do cidadão e o desrespeito à liberdade e à dignidade do trabalhador. Esses sim são bens que merecem a tutela e a resposta penal (e já o tem).

Se existe a preocupação — correta, diga-se — com a vulnerabilidade daqueles indivíduos que se submetem ao trabalho sexual, muito mais eficaz e proporcional é o que o Estado regulamente o exercício dessa atividade, inclusive das chamadas "casas de prostituição" e daqueles que se dedicam a intermediá-la.

Era nesse sentido, aliás, o já arquivado Projeto de Lei 4211/12, de autoria do Deputado Jean Willys. Além de regulamentar a prestação da atividade sexual por meio de "casa de prostituição", o PL definia o conceito de "exploração sexual", proibindo, por parte dos intermediadores, a apropriação de quantia superior a 50% dos rendimentos dos profissionais do sexo, o não pagamento pelos serviços prestados e a submissão forçada à prostituição. Com esse pano de fundo, o PL propunha a modificação da redação de diversos artigos do Código Penal, limitando a criminalização das condutas relacionadas à prostituição às hipóteses em que configurada a exploração sexual.

Em que pese o PL não suprir integralmente a necessidade de regulamentação da atividade das casas de prostituição e do exercício da intermediação da atividade sexual alheia — de modo a conferir maior proteção à dignidade e integridade sexual dos envolvidos — era, sem dúvidas, um passo importante para modernização da legislação.

Em suma, é preciso que revisitemos, desgarrados de moralismos, os tipos penais dos crimes sexuais, de modo que a autodeterminação sexual seja efetivamente tutelada, tanto para garantir que ninguém seja submetido a práticas sexuais indesejadas, como para tutelar a liberdade do indivíduo decidir sobre seus próprios atos, dispondo do seu corpo da forma que melhor lhe convier.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Luiza Oliver foi "João e Maria", de Chico Buarque.

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