Praça do Leitor

O blog das produções artísticas dos leitores da Folha

Praça do Leitor - Interação
Interação

Desconforto

Bastou passar um pano úmido para eliminar por completo aquele último sinal de luto

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Gabriel Vital

Resolvi eu mesmo limpar o sangue da janela depois de três dias. Até então, esperava que a chuva se encarregasse de fazer o serviço que, confesso, me causava repulsa. Como a chuva não veio, precisei agir, pois aquela mancha avermelhada no vidro já me provocava certo desconforto. A esta altura, o líquido já havia secado, motivo pelo qual precisei borrifar um produto para amolecer a sujeira. Em seguida, bastou passar um pano úmido para eliminar por completo aquele último sinal de luto que persistia em me encarar da janela.

Era como uma moldura que ostentava um retrato vivo da cidade; um quadro perfeito de um artista insatisfeito que, não contente com o próprio trabalho, atira o pincel molhado de tinta sobre a tela, estragando a paisagem, a vista, a vida daquela obra.

O pombo se chocara contra o vidro quando não havia ninguém em casa. Assim que cheguei e vi a mancha de sangue, pensei que alguém tentara entrar pela janela do andar de cima do sobrado e, sem sucesso, teria se machucado. Aproximei-me do vidro, notei que a janela estava trancada por dentro e parecia intacta. A mancha de sangue estava do lado de fora, menos mal. No telhado abaixo da janela, um pombo desses urbanos, cinza e preto, jazia entre duas telhas de cerâmica. Descartada a hipótese do ladrão, resolvi que deixaria aquele assunto para outro dia. Mantive a janela fechada e cerrei as cortinas.

Pombos na praça Carlos Gomes, em Ribeirão Preto - Edson Silva/Folhapress

Na manhã seguinte, já havia esquecido a mancha na janela e, como de costume, abri as cortinas para deixar o sol entrar. Foi quando notei algo diferente: agora, ao lado do pombo morto havia outro pombo, este vivo, de pé, olhando para o corpo. A cena me lembrou um velório, afinal, era o que parecia: um ser vivo velando o corpo de um ente querido. Tratei de afastar tal pensamento absurdo e segui rotina: café da manhã, escovar os dentes, banho, carteira, chave, celular, trabalho, horas e horas diante do computador, trânsito na volta e, finalmente, estava em casa. Já era noite quando voltei à janela e lá estava a mesma cena: o pombo morto, um vivo velando o corpo, o sangue seco no vidro.

Despertou-me curiosidade aquele comportamento. Por que um pombo passaria tantas horas ao lado de um cadáver? Aliás, se todos os pombos da cidade são iguais, por que diabos aquele se importava tanto com o outro? Resolvi pesquisar e descobri que os pombos são animais monogâmicos, tão dedicados ao outro, tão companheiros e fiéis que, dizem, é daí que vem o costume de chamar os casais apaixonados de pombinhos.

Nessa relação, é função da fêmea buscar gravetos e folhas secas para construir o ninho. Deve ter sido nessa busca, na correria para deixar tudo preparado para a chegada dos filhotes, que a pomba se atrapalhou, errou o trajeto, perdeu o controle do voo e chocou-se em alta velocidade com o vidro que apareceu em sua frente. Assim, a vida se perde no momento em que há mais vida, em que há sonhos, em que há euforia.

Preocupado com a demora da companheira, o pombo macho refez o caminho e encontrou o corpo inerte em um telhado qualquer. Não tinha esse sentimento de luto, humanamente construído, mas, por instinto, podia sentir a dor da perda, a sensação de que ficara sem a companheira que esse mesmo instinto ajudara a escolher. Era, a partir de então, um pombo sozinho em um mundo cheio de iguais.

Optei por um funeral modesto. Uma caixa de bombons vazia serviu de caixão. Enterramos a pombinha no dia seguinte, eu e seu companheiro, que permaneceu junto ao corpo até a despedida. Estranho submeter um animal a uma cerimônia dessas. Talvez fosse melhor que a natureza seguisse seu curso, decompondo o corpo ao ar livre, à vista do parceiro de uma vida. Mas não no meu telhado.

O enterro foi uma forma de me livrar do animal morto sem desrespeitar o viúvo que parecia profundamente abalado com a morte precoce da companheira. A dor não deixaria marcas aparentemente tão profundas se os dois não tivessem vivido uma vida feliz. Ainda me pergunto quanto tempo será que passaram juntos. O que sentiam quando se viam? Como planejavam o futuro? É certo que não há resposta para qualquer uma dessas perguntas, afinal, não passavam de potenciais transmissores de doenças, verdadeiras pragas urbanas. O resto é coisa da minha cabeça.


Gabriel Vital é jornalista.

O blog Praça do Leitor é espaço colaborativo em que leitores do jornal podem publicar suas próprias produções. Para submeter materiais, envie uma mensagem para leitor@grupofolha.com.br

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.