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São Paulo, a melhor metade do céu

Leitor faz homenagem à capital em crônica sobre aula de geografia na escola

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Heriberto Noppeney

Sempre fui ótimo aluno de português e péssimo em geografia. Um dia, era uma sexta-feira chuvosa e de muito calor, cheguei relativamente cedo ao colégio e dei de cara com a professora de geografia. Ela me olhou e educadamente disse que queria conversar comigo no fim da aula.

A matéria do dia era sobre o planisfério, mapa que representa toda a superfície do planeta Terra. A professora explicou que a geografia é a mais literária de todas as artes. Reúne várias ciências, como geologia, climatologia e biologia. E acabou dizendo que etimologicamente geografia é a escritura do mundo.

Grafite de EDMX (Henrique Montanari) em prédio no Bixiga, em São Paulo - Zanone Fraissat - 17.jan.21/Folhapress

Depois da aula, a professora voltou sorrindo e foi direto ao assunto. Disse que houve uma reunião com o diretor e alguns professores e que eu fui o motivo dessa reunião, mas ninguém fez queixa de mim; pelo contrário, todos estavam satisfeitos com meu rendimento escolar, principalmente o Zacharias, meu professor de português. Terminada a reunião, ela, muito indignada, resolveu conversar pessoalmente comigo. Afinal, eu era um péssimo aluno só em geografia.

Perguntou o que era para mim a geografia. Parafraseando Ambrose Bierce, respondi que Deus usa a guerra para ensinar geografia aos americanos. A indignação dela se transformou em raiva, o sorriso inicial desapareceu e os traços do rosto pareciam um cemitério de resíduos nucleares.

Disse-lhe então que amava São Paulo e, muito mais, o meu bairro. E que não tinha nenhum interesse em nada que estivesse fora da minha cidade. Tentei explicar que São Paulo, para mim, não é um lugar geográfico, mas sim um estado mental, meu limite, ir mais longe não preciso...

Comecei a falar para a professora que São Paulo está localizado na região Sudeste, que o estado faz divisa com Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio de Janeiro, representando 3% do território brasileiro.

O lema da capital, presente em seu brasão oficial, é Non ducor, duco, frase latina que significa "Não sou conduzido, conduzo". Fundada em 1554 por padres jesuítas, a cidade é mundialmente conhecida, exerce forte influência nacional e tem significativa importância internacional, tanto do ponto de vista cultural, como econômico e político. São Paulo tem altitude média de 760 metros e a serra da Cantareira é uma das maiores florestas urbanas do mundo.

Há um bairro em São Paulo, Bela Vista, mais conhecido por Bixiga, onde eu morava e se respirava cultura, magia, sonhos, teatro, biblioteca, tudo a poucos minutos do centro da cidade. Não era exatamente um bairro, e sim um estado de alma, onde o mundo não era um problema e as ausências eram sempre resolvidas. O único bairro onde os motéis tinham cama redonda com a cabeceira de curvim com som embutido. O clima era sempre de pecado, isso na melhor metade do céu.

Isso, Bela Vista é a melhor metade do céu! E a gente adorava quando Roberto Carlos cantava "no seu corpo, minhas mãos se deslizam e se firmam numa curva mais bonita...".

"Professora", disse eu, "aprendi a nadar no rio Tietê, onde a água era verdadeira. E comecei a entender e amar a natureza no Horto Florestal, ou Parque Estadual Alberto Löfgren. Então, não preciso saber que o maior rio de Hamburgo é o Elba, que o rio Sena fica na França e o Mondego em Portugal. Você me ensinou que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral, mas na verdade foi uma invasão à terra dos indígenas. Não quero saber da Europa, onde só com Alzheimer os idosos aceitam uma cuidadora negra. Não quero saber da geografia de um país que colonizou e roubou o Brasil. Semana passada você deu uma aula inteira sobre o Grand Canyon, no estado do Arizona, Estados Unidos. Mas não perdeu nenhum segundo para dizer que nesse mesmo país existem escolas preparatórias para ditadores..."

A partir desse dia a professora começou a me considerar um bom aluno de geografia. E, como São Paulo, continuei não sendo conduzido.


Heriberto Noppeney é poeta e fotógrafo. É paulista, criado no Bixiga, mas atualmente mora na Espanha.

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