Praça do Leitor

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Praça do Leitor - Interação
Interação

A triste sina da pequena árvore

Em crônica, leitor escreve sobre exigências de uma sociedade que oferece poucos recursos para superação

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Rodrigo Simas Aguiar

Era uma manhã ordinária, com pessoas e carros em seu vai e vem frenético. Sentei-me no banco do ponto de ônibus, às margens de uma das principais ruas da cidade. Em meio a toda aquela agitação, notei, no canto da calçada, há poucos centímetros do meio-fio, uma pequena árvore.

Tinha em torno de um metro e trinta de altura, ou seja, era não mais que um arbusto. Num primeiro momento, dava a impressão de estar ressecada. Seus galhos contorcidos, com a visão da rua ao fundo por entre espaços desprovidos de folhagens, formavam uma paisagem triste. Passei algum tempo admirando aquele arbusto e, depois, pude perceber sua heroica resistência.

A calçada, toda em cimento, havia coberto os espaços disponíveis. O fino tronco do arbusto estava completamente cimentado, sem um mísero espaço sequer para provê-lo de algumas gotas de água. Dava mesmo a impressão de que a árvore tinha sido ali fixada pelo cimento. Ainda assim, as pessoas esperam que o arbusto, privado das mínimas condições de sobrevivência, dê belas folhas verdes. Aquelas mesmas pessoas que o sufocaram, o hostilizaram e o depreciaram.

Árvore amoreira atacada por um parasita popularmente conhecido como erva de passarinho no parque Ibirapuera - Zanone Fraissat/Folhapress

Contudo, para minha surpresa, mesmo contra todas as probabilidades e em total desprovimento, a pequena árvore teimava em resistir. Diminutas folhas, verdinhas, brotavam esparsas por entre os ramos secos. O ato de resistência daquele arbusto me emocionou.

Ao meu lado, sentou-se uma jovem com seu filhinho de dois anos de idade. Era uma mulher corpulenta, cujos traços ostentavam uma origem multiétnica, parte indígena e parte negra. De fato, se fosse uma pessoa criada em um lar de recursos, seria uma dessas modelos em campanha publicitária de grandes grifes. Mas, similar ao arbusto, ela apenas resistia a uma sociedade que lhe hostilizava, deformava e desprovia. Tinha sérios problemas de saúde e mal podia caminhar. Mesmo assim, com um sorriso no rosto, deu-me um sonoro "bom dia". Seu filhinho, de roupas sujas e pés descalços, emanava vida. Corria de um lado a outro, com seus pezinhos ao chão, enquanto a mãe, preocupada, fazia esforço para buscá-lo e protegê-lo dos perigos da rua movimentada.

As mesmas pessoas que cobravam ramos verdejantes do arbusto sufocado, cobravam dela uma sandália para cobrir os pés da criança, conforme ela mesma confidenciou aos demais que esperavam o circular. A sociedade limpa e asseada, que elege tiranos sedentos por armas e por destruição e que, facilmente, vê noutros uma condição de inferioridade. Quanta hipocrisia, quanta perversidade.

Ao fim, entendi que a senhora e a criança eram como aquele arbusto, que mesmo com o cimento sufocando suas raízes, oferecem seu maior ato de resistência: as verdes folhas da alegria. Afinal, criança tem que ser criança. Talvez, em seus pés descalços, aquele garotinho seja mais feliz do que muitos filhos da sociedade asseada. Ele dá folhas, e não são folhas artificiais. Lástima é que, quando crescer, os mesmos que o sufocam vão dizer-lhe: "trabalha, que um dia poderás ser como eu". Mandar-lhe-ão acordar cedo, estudar, mas o que realmente querem é que ele seja como aquela árvore cimentada que, por mais resistência que ofereça, nunca crescerá plenamente.

Então, como cobrar que o arbusto, hostilizado, desprovido, sufocado, cresça e dê densos ramos verdes? Cinismo, hipocrisia, perversidade. A perversidade típica da sociedade higiênica que sela a triste sina da pequena árvore cimentada. Infelizmente, é só mais uma manhã ordinária.

Rodrigo Simas Aguiar é coordenador do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal da Grande Dourados

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