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O encontro que nunca aconteceu

Começamos a conversar na pandemia e seria a primeira vez que eu sairia com alguém

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Kauã Barreto

Desperto, me dirijo ao banheiro. Olho o espelho e me encaro: hoje é um grande dia! Ao escovar os dentes, sou tomado por uma sensação de vômito e lanço para fora da boca um líquido verde estranho. A minha mente me trai, provoca sensações insuportáveis em meu baixo-ventre.

De repente a respiração descompassa, o apetite sucumbe à ansiedade e o coração —ah, o coração!— acelera levemente. Ainda assim o mais penoso era mesmo a sensação no baixo-ventre, que, me parecia, se comunicava com o intestino, e isto, sim, me preocupava. E como!

Estava ansioso e nervoso e inseguro. Seria esse o meu primeiro encontro com uma pessoa com a qual vinha trocando mensagens há quase três anos.

Começamos a conversar na pandemia, em 2020. Aquela época em que estávamos (quase) todos reclusos em casa. Foi da minha parte que veio o interesse. A prima, que era sua amiga, disse: "Eu tenho uma amiga muito interessante que faz o seu estilo", e de cara me mostrou o seu perfil no Instagram. De fato, eu me interessei e a achei muito bonita.

Ilustração de Guto Lacaz /Folhapress

Comecei a segui-la e logo enviei uma mensagem no direct. Fui ignorado. Ela só me permitiu seguir, já que o perfil era privado. Eu insisti. Solicitei à prima que lhe pedisse a permissão para me oferecer o seu número. A prima pediu, ela concordou, mas não sem antes estranhar e questionar por que um garoto, do nada, parecer tão interessado em conhecê-la.

Por mensagem, ela sempre foi gentil, embora muito monossilábica e comedida. A bem da verdade, talvez fosse eu muito excessivo nas palavras, entusiasmado pelo ardor da curiosidade, quiçá da paixão.

Enviava mensagens com teor formal, com caixas enormes de textos, mas penso que isso sempre quebrou o clima e impediu um fluxo contínuo de mensagens.

Um amigo, com quem segredei minha aventura interpessoal, disse: "K., seja mais direto, mais informal. Pare de enviar essas mensagens longas. Isso é chato. Mas, se ela já está acostumada com você assim, tudo bem".

Sim, eu podia mesmo estar sendo muito chato com algumas perorações exaustivas, talvez pomposas demais, querendo impressioná-la com a minha possível inteligência, já que me achava parco de prendas físicas.

Mas era meu jeito. Com ela, eu ainda não alcançara intimidade ou liberdade para pôr o meu humor à baila. Temia assustá-la. Temia a rejeição de quem eu era. Pois eu também era o rapaz dado a graçolas que falava besteiras, cometia fiascos, burlava com os amigos. E nada disso eu ainda me sentia confortável em ser na sua frente. Nossos diálogos, sempre esparsos, não auspiciavam que este "K." pudesse vir à tona. Eu me afogava na espuma do meu medo, da minha insegurança: Será que ela vai gostar de mim? Será que ela vai gostar desse meu lado?

Não considerava que ela pudesse se surpreender positivamente com isso. Com o meu eu completo. Não só aquela versão fragmentada e imprecisa que até então eu havia demonstrado.

Contudo, hoje, uma quarta-feira cinzenta, chuvosa, fria, cá estou, diante do xadrez da realidade, ansioso para encontrá-la. Se ela topou, 50% dessa ansiedade que ora atravessa meu corpo haveria de desaparecer. Afinal, algum interesse tem em me conhecer pessoalmente, e isso me deixa feliz.

Mas não seria esse, apenas, o primeiro encontro com ela, como relatei. A verdade é que seria o meu primeiro encontro com uma pessoa na vida, a qual jamais havia visto presencialmente. Por isso em algum grau era normal o nervosismo que sentia. Mas passe, por favor, passe!, eu suplicava, mentalmente.

E passou tão logo ela me enviou uma mensagem no WhatsApp, adiando o encontro: "K., querido. Temos um problema. Minha voz ainda está bem ruim e, como eu não posso forçar, acho melhor a gente remarcar. O que você acha?"

Foi assim, de modo tão, mas tão mal elaborado, que a guria me deu um bolo, um fora, meteu um caô, sei lá. Até hoje esse encontro nunca aconteceu.

Kauã Barreto tem 19 anos e é um estudante cabo-friense (RJ) apaixonado pela literatura, além de apreciador do ofício jornalístico, com fervor pela escrita.

O blog Praça do Leitor é espaço colaborativo em que leitores do jornal podem publicar suas próprias produções. Para submeter materiais, envie uma mensagem para leitor@grupofolha.com.br

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