Praça do Leitor

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Descrição de chapéu instagram

Crônica de um insta-mercado

Leitora analisa comportamentos na vida real baseados em pressão estética das redes sociais

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Cecília Fortuna

Era só uma quarta-feira fria e duas famílias enchiam seus carrinhos em um mercado. Dois grandes estavam cheios, um sem nada era guiado por uma criança e um que tinha apenas o bebê. O pequeno já falava alto, como todos os pais da cena. Apenas a criança menor parecia tímida e fora daquele mundo real virtual, sem espaço.

Rodinhas flutuavam pelos corredores preenchendo seus vazios com melancia, melão, água, carvão e mais coisas que estavam escondidas sob os pães. Uma das mães tinha o cabelo preso em um rabo de cavalo alto e usava uma roupa que parecia ter sido inspirada em alguma blogueira. Andava fazendo poses e parecia estar esperando um flash. Falava alto, então todos já sabiam que ela iria acender a lareira. Já imaginei coraçõezinhos voando ao lado dela nos seus "stories" do Instagram.

Cliente observa vegetais expostos em supermercado na província de Jiangsu, na China - Huan Yueliang/Xinhua

Os pais compravam frutas já cortadas para as fotos da temporada. A outra mãe parecia fora do ar, cabelo e unhas prontas, mas sem querer estar ali. Estavam de férias no campo e ainda apressados como na cidade.

A mãe do rabo de cavalo disse alto: "acho que foi", parando seu carrinho no caixa e olhando o outro carrinho lotado. Um dos maridos com a roupa neutra, pronto para aparecer na foto, mas não destacar, respondeu desanimado, imaginando a conta a dividir.

Fiquei olhando para ver onde poderia apertar o "delete" daquela cena e procurar outro conteúdo. Parecia que iriam entrar numa cabana e não sair nos próximos cinco dias, só comer e dormir e talvez brincar com as crianças para fazer os "cliques". Nesse momento, olhei para minha filha e rimos juntas: parecem ter saído do Instagram, que estranho, dissemos juntas. E caímos na gargalhada, era uma risada gostosa, livre de pressões estéticas.

O cartão de uma esposa não passou, resolveram dividir o salário mínimo que gastaram numa compra de supermercado em quatro cartões, todos colaborando com o que possivelmente seria consumido e aproveitado naqueles próximos cinco dias de enfim tranquilidade... Ou de futuros likes sem "publi", só mesmo para postar?

Lembrei-me da frase de um sábio artista "o horizonte está na altura dos seus olhos". No caso, as famílias envolvidas no momento pareciam ter as telas dos celulares como horizontes, olhando para baixo, mas, ao mesmo tempo, achavam que o espaço do mercado era o ambiente virtual, um reality show.

O objetivo de todos claramente era ter luz nos casais e plateias em nós. Uma plateia que, dessa vez, não aplaudiu. Observou tudo sem focar o olhar neles, fingiu não perceber um comportamento coletivo de exposição e perceptível dúvida do que é feito para curtir ou para postar e ser curtido.

Que vocabulário novo teremos para o despertar em todas essas situações contemporâneas? Poderíamos criar agora uma frase para esse autoconhecimento, que tal: conheça sua aurora "virturreal" e saia das garras do seu celular.


Cecília Fortuna é mãe, formada em psicologia e em letras.

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