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Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo

'The Beatles: Get Back' quase me fez deixar de ser fã

É possível fazer avaliação imparcial de algo relacionado aos Beatles?

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É possível fazer uma avaliação imparcial de qualquer coisa que seja relacionada aos Beatles? É possível falar dos Beatles sem falar de si mesmo?

O quatro integrantes do grupo Beatles tocam juntos no documentário The Beatles: Get Back
Pôster do documentário The Beatles: Get Back (Foto: Divulgação / Disney+)

Sou, e continuo sendo, fã devoto deles. Achava que já havia lido, visto e escutado tudo sobre a banda, quando foi anunciado que o corte do documentário 'The Beatles: Get Back' ​, de Peter Jackson, teria 9 horas de duração.

Fui assistir. Porém, passada a comoção, o produto desnudou-se.

Se de perto ninguém é normal, de muito perto, em 4k, e por 9 horas, todo mundo é tão normal que se desnuda banal. E o que a obra lançada em dezembro de 2021 pelo streaming Disney Plus revela é uma surpreendente, quase chocante, e certamente enfadonha trivialidade da rotina daqueles dias em que viviam os quatro de Liverpool.

Humana e musicalmente enfadonhos. É possível falar dos Beatles sem falar de si? Fui dono de estúdio de música no Rio de Janeiro nos anos 90. Por quase dez anos, trabalhando como produtor, gravei, fiz arranjos para tudo: pagode a gospel, grindcore a pop rock.

E, acreditem, em todas as bandas, não importa o estilo, há um mala como Paul McCartney. O que é fofo até o dia 2, leva tudo a sério demais e precisa da parceria de algum artista genuíno mas disfuncional que, criando um tom acima, funciona como disfarce para seu talento na verdade não excepcional. Sem as canções de seus parceiros, McCartney é apenas um ótimo compositor, não um gênio.

Lennon, vemos no documentário, é esse maravilhoso e monstruosamente parceiro que, constrangido artisticamente com o momento criativo da banda, abraça a heroína e passa quase todo o tempo praticando uma violência com a maravilhosa artista Yoko Ono, então sua esposa. Um absurdo que só não choca quem nasceu ou romantiza os anos 60, quando qualquer Polanski podia tomar banho nú com uma garota de 14 anos que tudo bem.

Hoje, há um consenso entre a crítica que, principalmente em música e cinema, os anos 70 foram superiores aos 60. Os Beatles são uma banda exclusivamente dos anos 60. O que acontece com Yoko e Get Back expõe sem perceber, quase absolvendo Lennon, confirma isso.

George Harrison não passa, ali, de um sujeito essencialmente sessentista que se submete a um ambiente desinteressante, é o que vê-se quando cai o véu do encanto do encontro entre espectador e nostalgia via tecnologia (a essência da arte do século 21). Também é tóxico para o espectador sóbrio ver as composições de Harrison (melhores, na época, melhores do que as de Lennon e McCartney) serem ignoradas praticamente como Peter Jackson ignora quem não conhece a banda.

Ringo é um sujeito doce e leve. Por isso mesmo, em duas horas de documentário, o espectador menos impressionável começa a se perguntar o que o leva a estar fazendo ali. A resposta é justamente o que depõe contra o genial baterista.

Em 'The Beatles: Get Back' ​, o diretor neozelandês, que conseguiu, fazendo modificações importantes, emprestar verdadeiro drama à imensa obra 'O Senhor dos Anéis', onde o autor, J.R.R. Tolkien, estava mais interessado na construção de mundo e de uma mitologia inglesa do que em personagens, faz do famoso show do Beatles no terraço, o seu Frodo-precisa-jogar-o-anel-no-vulcão-em-Mordor. Um momento que não chega nunca. Quando chega, tem sua potência. Mas o que fica claro é que desde Sgt. Pepper 's os Beatles já não pertenciam mais ao clube de bandas que crescem ao vivo.

O que resultou do exercício de tentarem ser uma boa banda de palco, como os Rolling Stones, que haviam lançado em 1968 'Sympathy for the Devil', filmado por Godard, e um bálsamo para a contraceptividade deste documentário novo dos Beatles, foram canções tolas. Get Back, cujo corte de McCartney compondo-a viralizou nas redes sociais, é um pocotó inglês, só um gostoso assovio de cocheiro distraído que se lançado por um artista desconhecido nunca teria chegado a nossos ouvidos.

No mesmo ano em que o single de Get Back, chegaram nas lojas também canções sublimes, como Paranoid, do Black Sabbath; Stoned Love, das Supremes; Sweet Jane, do The Velvet Underground; Sex Machine, do James Brown; ABC, dos Jackson Five; The Man Who Sold The World, do David Bowie; O Telefone Tocou Novamente, de Jorge Ben; Primavera, de Tim Maia; That´s The Way Love Is, do Marvin Gaye,

Ou seja, o melhor viria após o término dos Beatles. Então qual é o sentido de se submeter a um documentário tão longo sobre a banda. Um ponto positivo em um mar de nove horas (aqui usando o duplo sentido do termo em português). Trata-se, afinal, de uma rara história de black savior, porque é o tecladista Billy Preston, com sua energia, seu axé, que leva aos Beatles o prazer de tocar junto. É genuinamente comovente.

E talvez os Beatles precisassem ter acabado para que sua onipresença pudesse deixar passar o bloco de tudo o que incrível viria depois no mundo da música. Get Back, o documentário, passada a comoção de dar de cara os poros da pele dos rostos de Paul, John, George e Ringo como tivessem sido filmados ontem, e após o efeito psicanalítico, consequente e inevitável, de que a tecnologia vai nos dar um dia a todos vida eterna, ainda que digital, é um produto frio, elitizado e excludente.

Que fala apenas com quem não consegue escrever sobre Beatles sem falar de si mesmo.

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