Quadro-negro

Uma lousa para se conhecer e discutir o que pensa e faz a gente preta brasileira

Quadro-negro - Dodô Azevedo
Dodô Azevedo
Descrição de chapéu Emmy

Filme com Viola Davis revoluciona tanto quanto Godard

'A Mulher Rei' traz avanços temáticos inimagináveis para a indústria

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Há modos e modos e revolucionar o que seja. Forma, conteúdo, apenas forma, apenas conteúdo.

Mas, revoluções em geral, não só na arte, costumam acontecer antes fora da indústria.

Antes de vermos revoluções visíveis, vemos nos porões as pessoas experimentarem coisas novas.

Muitas delas nunca chegamos a ver nascer.

Ficam ali, no nicho.

Para ficarmos na arte, o jazz bebop de Charlie Parker, o cinema de Godard. Produtos de nicho.

Viola Davis, atriz e produtora de `Mulher Rei', filme que estreou no Brasil. Unique Nicole/Getty Images/AFP - AFP

Produtos para os quais a indústria disse "não".

Estreou no Brasil o filme "A Mulher Rei", que conta a história do reino de Daomé, que expulsou traficantes de escravos de seu litoral nos anos 1800. Reino este protegido por uma guarda composta exclusivamente de mulheres muito brabas, comandadas por uma general interpretada por Viola Davis.

Nenhum homem sabe filmar ou fotografar ou pintar mulheres sem objetificá-las. Inclui-se aí desde gente irrelevante como eu, que já dirigi três longas-metragens independentes, a gente grande como Leonardo da Vinci. Ou como Godard.

Em "O Desprezo", Godard filma a bunda da atriz Brigitte Bardot em muitas cores, e a outra metade de seu encanto em filmes é ser um dos precursores da publicidade e dos videoclipes em sua fase com a atriz Anna Karina.

Ainda assim, a indústria não. Ou melhor, o cineasta sempre disse não à indústria.

Não é fácil tomar coragem para encarar o mundo de quem financia filmes. Vimos em bons filmes sobre o tema, como "Barton Fink", dos irmãos Coen, ou "Cidade dos Sonhos", de David Lynch, por exemplo.

Viola Davis foi lá e conseguiu financiamento para esse milagre que é "A Mulher Rei" –filme que é, antes de tudo, uma cartilha a ser seguida de como finalmente filmar mulheres sem objetificá-las, sem colocar sua sexualidade em primeiro plano, sem procurar determinar gênero de uma forma binária. De como filmar personagens poderosas sem o cair no fetiche das mulheres poderosas, e filmar suas fragilidades sem cair no fetiche das mulheres fragilizadas. Enfim, tudo o que personagens homens sempre tiveram direito.

O filme "Gladiador", de Russel Crowe, é o típico filme que os homens da indústria adoram colocar seu dinheiro.

Mas pode ser que "A Mulher Rei", que vem sendo comparado ao filme de Ridley Scott, tenha vindo ao mundo porque algo mudou. Talvez um mundo pós sucesso do filme "Pantera Negra", onde a guarda do rei, também formada por mulheres, fez tanto sucesso entre a garotada. Talvez mais mulheres estejam em posição de poder na indústria. E poder é dinheiro. Viola Davis é, ela mesma, uma das produtoras de "A Mulher Rei".

Sua performance no filme é uma das mais sofisticadas do ano, porque constrói uma personagem dura que demonstra uma miríade de sentimentos nas frestas da arte de atuar.

A atriz e produtora teme que, se o filme não arrecadar bem, produtores podem não financiar mais filmes do tipo. O longa estreou bem nos EUA. No Brasil, Viola veio pessoalmente se envolver na divulgação, reuniu-se com outros artistas negros brasileiros, tocou tamborim na Mangueira, deu entrevista no Fantástico.

E foi muito interessante quando ela escolheu o Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, para reunir uma plateia lotada de gente preta para a sessão de gala do filme e descolonizar um dos locais mais branquificados da história do país. Onde as galerias de hóspedes ilustres exibem uma parede de retratos de gente como Frank Sinatra.

Mesmo assim, entre alguma das muitas comunidades pretas que existem no Brasil, o filme recebeu algumas críticas. Pelo fato de Viola ter contratado duas roteiristas brancas e nenhuma preta para o projeto, e no roteiro haver um personagem branco-mestiço-português-escravagista-arrependido-salvador que, se não fosse sua intervenção em dois pontos de ação, todas as personagens negras do filme teriam morrido. E pela demonização do homem negro, relacionado no filme à violência e estupro contra mulheres.

É assim que, tão revolucionário quanto Godard, mas navegando em águas menos confortáveis do que o francês decidiu percorrer (dentro de nichos, erros e acertos viram, de qualquer forma, culto), que segue "A Mulher Rei" .

Um filme histórico. Duvida? Reveja agora "Indiana Jones e o Templo da Perdição" e a demonização que a equipe criativa de Steven Spielberg faz no de rituais sagrados hindus. O próprio Spielberg deu a Palma de Ouro em Cannes, em 2013, a "Azul é a Cor Mais Quente" –filme que mais ensina como não filmar mulheres.

Com isso na cabeça, reveja as praticamente mesmas cenas de rituais africanos do filme de Viola Davis, dessa vez tratadas de forma respeitosa, sagrada. Veja a foto da atriz no Rio de Janeiro posando ao lado de Gabriel Martins, diretor de "Marte Um", que dá uma aula de como filmar corpos nus de mulheres fazendo amor, e reflita.

Vivemos, sem muito alarde, uma revolução a ser celebrada como uma alforria.

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