Que imposto é esse

Reforma tributária para leigos e especialistas; com apoio de Samambaia.org

Que imposto é esse - Eduardo Cucolo
Eduardo Cucolo
Descrição de chapéu
Luiza Oliver

A irretroatividade do entendimento do STF sobre apropriação indébita de ICMS

Tribunais estão impondo punição retroativa a condutas que anteriormente eram consideradas lícitas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Luiza Oliver

É advogada criminalista, mestre em direito penal pela Universidade de Nova York, conselheira estadual da Ordem dos Advogados do Brasil e sócia do escritório Toron Advogados

O STF (Supremo Tribunal Federal), na polêmica decisão proferida no recurso em Habeas Corpus nº 163.334, entendeu configurar crime de apropriação indébita o não recolhimento do ICMS próprio, mesmo nas hipóteses em que fora declarado.

Em suma, solidificou-se o entendimento de que a venda de mercadorias com o ICMS embutido no preço, sem o pagamento ao Estado do tributo correspondente, se realizada de maneira reiterada, caracteriza o crime previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, ainda que o tributo tenha sido devidamente declarado ao Fisco.

A decisão representa uma mudança significativa e controversa no entendimento jurisprudencial sobre o tema.

Deixando de lado o ilegal alargamento do tipo penal promovido pela decisão e partindo do pressuposto de que a conduta daquele que vende mercadorias sem o recolhimento do ICMS em operações próprias pode se amoldar ao crime previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90, é inegável que esse entendimento só poderia ser aplicado para fatos futuros, posteriores à mudança de interpretação pelo STF, sob pena de violação de princípios constitucionais e penais fundamentais.

Luiza Oliver, mestre em direito penal pela faculdade de Nova Iorque, conselheira estadual da Ordem dos Advogados do Brasil e sócia do escritório Toron Advogados - Sylvio Sirangelo-27.nov.2019/TRF4

É das lições mais elementares do direito a irretroatividade da lei penal mais gravosa. Esse princípio, consagrado no Artigo 5º, XL, da Constituição Federal, estabelece que a lei penal mais severa não pode retroagir para prejudicar o réu. Isso significa que uma pessoa não pode ser punida se a conduta por ela praticada não era considerada criminosa no momento em que ocorreu. Garante-se, assim e em termos simples, que ninguém seja surpreendido por uma mudança súbita das regras do jogo.

A garantia da irretroatividade da lei penal mais gravosa, como parece óbvio, tem como objetivo tanto proteger o cidadão contra arbitrariedades do Estado, como assegurar a estabilidade e a previsibilidade do ordenamento jurídico: com base em regras pré-determinadas, o cidadão pauta seu comportamento, sabedor do que pode ou não acarretar responsabilidade penal.

A mesma lógica que embasa a irretroatividade da lei penal mais gravosa deve, por coerência, orientar as mudanças de entendimentos jurisprudenciais que impliquem em alteração sobre a tipicidade penal de uma conduta.

Assim como uma lei penal mais severa não pode retroagir para alcançar fatos ocorridos antes de sua vigência, uma interpretação jurisprudencial mais ampla, que dê contornos criminosos para conduta anteriormente considerada penalmente irrelevante, também não pode ser aplicada retroativamente, sob pena de violar os mesmos princípios constitucionais e gerar insegurança jurídica ainda maior.

Ora, as decisões judiciais, justamente por interpretarem a lei, servem como verdadeiro guia de conduta, dando aos indivíduos a exata compreensão do que é considerado legal ou ilegal. Dessa forma, os precedentes judiciais não apenas informam as partes envolvidas num processo específico, mas também orientam todos os membros da sociedade.

Uma consulta rápida ao repositório jurisprudencial dos Tribunais brasileiros revela que até o final 2019 eram inúmeras as decisões judiciais —inclusive do STJ e do STF— dizendo que "O comerciante que não recolhe o ICMS, dentro dos prazos que a lei lhe assinala, não comete delito algum. Muito menos o capitulado no art. 2°, II, da Lei nº 8.137⁄90" e que "Nunca esse inadimplemento poderá conduzi-lo a uma condenação criminal... Porque sua conduta não é típica. E, sem tipicidade, não pode haver crime, nem muito menos condenação criminal".

É inegável que esse entendimento —majoritário até o final de 2019— criou a legítima expectativa no contribuinte de que, ao declarar o ICMS próprio e não recolhe-lo, não estava cometendo qualquer crime.

Deixando mais uma vez de lado as muitas críticas à ginástica interpretativa que fundamentou a mudança de entendimento jurisprudencial, o mínimo que se esperava é que a decisão do STF fosse modulada para atingir apenas fatos futuros, garantindo estabilidade e previsibilidade ao sistema jurídico.

Não obstante, o que ocorreu foi exatamente o oposto. Naquele próprio caso, a Suprema Corte, em que pese diante de conduta praticada à época em que a maioria dos Tribunais entendia por sua atipicidade, entendeu estar configurado o crime do art. 2º, inciso II, da lei 8.137/1990 e manteve a ação penal movida contra empresário que não recolhera ICMS "de forma contumaz".

O entendimento replicou-se nos tribunais inferiores e desde o julgamento do já referido RHC 163.344, pipocaram centenas de acusações criminais por apropriação indébita de ICMS por fatos ocorridos ao tempo em que o entendimento jurisprudencial dominante era no sentido de que "aquele que declara o ICMS devido pela própria empresa, porém deixa de recolher os valores aos cofres públicos... não incide na figura típica do artigo 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/90".

Ao adotar essa nova interpretação, os Tribunais estão, na prática, impondo punição retroativa a condutas que anteriormente eram consideradas lícitas, com base no entendimento jurisprudencial consolidado da época.

Além disso, ignoram a existência do erro de proibição, previsto no artigo 21 do Código Penal, que exclui a culpabilidade do agente quando ele age com base na interpretação equivocada da lei, imaginando lícita sua conduta. Ora, se até mesmo os Tribunais —inclusive os Superiores— titubeavam quanto à correta interpretação do art. 2º, II, da Lei 8.137/90, dizendo ser atípico o não recolhimento de ICMS, como então processar e condenar criminalmente alguém por esses exatos fatos?

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.