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Políticas de saúde no Brasil em debate

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Precisamos falar sobre a saúde mental da população negra

Questão coletiva e multifatorial, construção de políticas de saúde mental exige participação da população negra

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Rachel Gouveia

Já faz algum tempo que tenho realizado estudos e pesquisas que analisam os impactos do racismo e sua relação com a saúde mental. Durante a pandemia a demanda por serviços de saúde mental cresceu demasiadamente e ganhou repercussão em diferentes espaços. Posso dizer que esse não é um tema simples, já que é preciso compreender as relações raciais e sua dinâmica particular na sociedade brasileira, assim como a própria noção de saúde mental, que apresenta diferentes concepções teóricas e científicas.

De acordo com o Relatório mundial sobre saúde mental: Transformando a saúde mental para todos, publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a maioria das sociedades e dos sistemas de saúde não viabilizam cuidados em saúde mental e não dispõem de atenção especializada adequada para as pessoas que dela necessitam. Isso significa que a ausência de cuidados em saúde mental afeta diretamente os direitos humanos. O relatório ainda indica que os determinantes sociais são um dos principais impulsionadores de problemas relacionados à saúde mental, o que exige transformações radicais, dentre elas a proteção dos direitos humanos.

Um outro ponto diz respeito à prevalência de adoecimento psíquico em ambientes de conflitos. Em 2019, a revista The Lancet publicou um estudo que analisou dados da OMS sobre os impactos de ambientes em conflito na saúde mental das populações. Apesar da heterogeneidade dos estudos e dos dados, é preciso destacar como os desastres naturais, as emergências em saúde pública, as guerras e os contextos de violação de direitos humanos afetam a curto, médio e longo prazo as condições psíquicas de populações inteiras.

Saúde mental é questão coletiva e multifatorial

Os desafios para entender a relação entre saúde mental e racismo são muitos. O primeiro deles é compreender que saúde mental não se resume a uma questão individual e envolve diferentes aspectos da vida. A garantia do bem-estar está relacionada às condições essenciais como: alimentação, educação, lazer, esporte, saúde, habitação, cultura, dentre outras necessidades para a existência. Isso significa que para termos desenvolvimento cognitivo e intelectual precisamos ter acesso a uma alimentação adequada e balanceada, sendo garantida pela segurança alimentar. Ao mesmo tempo que é necessário o acesso à educação para estimular o processo de aprendizagem que não está restrito ao ambiente familiar, mas é comunitário e escolar. Da mesma forma, ter moradia com saneamento básico e condições ambientais adequadas é extremamente necessário para garantir boas condições de vida e saúde.

Desigualdades sociais, racismo e saúde mental

Um segundo desafio que precisamos explicitar diz respeito a compreensão de que as condições de vida se encontram relacionadas a organização econômica, social e política da nossa sociedade. Se por um lado temos um histórico de distribuição de renda desigual, ao mesmo tempo o trabalho no Brasil escancara o que é base da formação social brasileira: as relações raciais. Um país que cresceu e se desenvolveu a partir do estupro e da tortura dos corpos negros, tende a negar, silenciar e apagar a faceta mais cruel e violenta de sua história, justificando as atrocidades pelo mito da democracia racial. Colocar o dedo na ferida não é uma tarefa fácil, porque revela a dívida produzida pela violação dos direitos humanos que subsidia a existência brasileira.

Pesquisa revela que 80% da população vê Brasil como racista. No entanto, apenas 11% afirma ter atitudes racistas. Gabriel, 27 anos, diz passar por situações de discriminação quase todos os meses. Carioca, ele vive em São Paulo há mais de dois anos e relata abordagens policiais sem justificativa e olhares estranhos até onde mora, no Copan. - Foto: Karime Xavier / Folhapress

Dessa maneira, o debate sobre a saúde mental da população negra precisa ser feito a partir do reconhecimento de como o racismo atravessa os modos de vida e produz o adoecimento psicossocial de uma parcela expressiva da população brasileira. O que torna o problema coletivo e não individual. Apesar do indivíduo ser o maior interessado no acesso ao atendimento em saúde mental, seu bem-estar não é sua exclusividade, mas, ao contrário, está em interação com as dinâmicas e interesses da sociedade.

Além disso, as questões de saúde mental da população negra não podem ser vistas como um problema exclusivo de pessoas negras. Ao contrário, é um debate que tangencia pontos fundamentais, como o direito à saúde e o direito à vida. Dessa forma, defendemos uma perspectiva ampla sobre o tema, capaz de revelar os problemas estruturais por trás do sofrimento psíquico de negras e negros e da forma como a sociedade percebe e responde à esse problema histórico e social.

Segundo a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, do Ministério da Saúde, a letalidade da juventude negra é um dos determinantes sociais mais alarmantes. Se por um lado os jovens morrem cada vez mais, por outro as mulheres negras são aquelas que estão sendo altamente medicalizadas. Ao mesmo tempo, as doenças consideradas evitáveis, como hipertensão arterial, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares são predominantes na população negra, assim como a violência obstétrica. Tais fatos demonstram o quanto a promoção do bem-estar, da saúde e da saúde mental encontram-se relacionados a uma concepção de sociedade que pode estar negando permanentemente o princípio básico da existência: o direito à vida.

Movimento negro e construção do SUS

Como terceira e última questão, é preciso destacar a relevância da participação popular na construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. É fundamental frisar que os movimentos e coletivos negros e de mulheres negras possuem uma importância na construção do SUS. Não é de hoje que negros e negras reivindicam atenção para os determinantes sociais, a perpetuação das violências e seus rebatimentos na saúde e saúde mental. Entretanto, para seguirmos avançando é preciso intensificar a participação popular nas instâncias de representação. Podemos registrar a histórica 17ª Conferência Nacional de Saúde, organizada pelo Conselho Nacional de Saúde e promovida pelo Ministério da Saúde, tendo como tema "Garantir direitos, defender o SUS, a vida e a democracia – Amanhã vai ser outro dia!" e realizada em julho deste ano. Participaram 4.000 pessoas como delegadas que foram eleitas em conferências municipais, estaduais e livres.

No caso da saúde mental, em dezembro, ocorrerá a V Conferência Nacional de Saúde Mental – Domingos Sávio e durante o mês de setembro acontecem diversas conferências livres, como a Conferência Livre de Saúde Mental da População Negra e a Conferência Livre de Saúde Mental das Periferias. A participação popular é fundamental para combatermos as iniquidades em saúde, avançarmos com a equidade no acesso aos serviços de saúde mental e na garantia do direito à vida. O antirracismo precisa estar como premissa basilar na expansão e consolidação dos serviços de saúde mental, na qualificação dos gestores e profissionais, na adesão obrigatória do quesito raça/cor nos registros e nas tecnologias de cuidado em saúde mental que devem respeitar a diversidade étnico-racial, cultural e territorial.

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Rachel Gouveia é professora da graduação e da pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e assessora técnica especializada do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Autora do livro "Na mira do fuzil: a saúde mental das mulheres negras em questão", publicado, em 2023, pela Editora Hucitec e o Selo Diálogos da Diáspora. 

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