Saúde em Público

Políticas de saúde no Brasil em debate

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O SUS tem jeito?

A mobilização da sociedade e das instituições pode transformar o futuro de uma das maiores conquistas da sociedade brasileira

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Ricardo de Oliveira

É possível acreditar que o SUS pode superar seus problemas de atendimento e se transformar em motivo de orgulho da população brasileira, como o National Health Service (NHS), o sistema de saúde da Inglaterra?

Acredito que sim. Essa crença se apoia no que fomos capazes de construir como sociedade A partir do reconhecimento pela Constituição de 1988 de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, criamos o maior sistema de saúde público, único e universal do mundo inspirado nas melhores práticas internacionais de atenção à saúde.

Após a criação do SUS, a evolução da garantia do exercício do direito à saúde foi surpreendente, considerando que políticas públicas de superação da desigualdade encontram grande resistência de setores da sociedade brasileira.

A construção de uma enorme infraestrutura e a contratação de milhares de servidores possibilitaram um grande volume de prestação de serviços de saúde em todo o país. Hoje, o SUS é o único serviço de saúde disponível para 75% da população brasileira. Todavia, os 25% restantes também se utilizam dos vários serviços do SUS ao longo da vida, como, por exemplo, vacinação, vigilância sanitária e epidemiológica, atendimento de urgência e emergência e outros. Portanto, podemos dizer que 100% da população se utiliza dos serviços do SUS, uns mais e outros menos.

Os resultados excepcionais para a saúde da população advindos dos investimentos realizados na estruturação do nosso sistema podem ser constatados em vários indicadores importantes como queda na mortalidade infantil e materna, ampliação da vacinação, a cobertura da população por equipes de saúde da família, fornecimento gratuito de medicamentos, o crescimento do número de procedimentos de atenção à saúde e outros.

A pandemia do COVID-19 evidenciou para a população o nosso enorme e robusto sistema de saúde pública e sua capacidade de atender às demandas de saúde da população. Vale lembrar que os profissionais de saúde eram aplaudidos pela população pelo seu desempenho no enfrentamento dessa pandemia, contribuindo assim para a melhoria da imagem do SUS.

Vacinação em crianças na UBS Nossa Senhora do Brasil, no bairro da Bela Vista, região central de São Paulo, em 2022 no primeiro dia de imunização em crianças sem comorbidades. - Foto: Rivaldo Gomes/Folhapress

No entanto, essa valorização do SUS pela ampla maioria da população brasileira durante a pandemia foi uma exceção à regra. Essa mudança na imagem não permanecerá se não formos capazes de superar as deficiências de atendimento, financiamento e gestão, regular adequadamente a participação privada no mercado de saúde, no sentido de preservar o interesse público e garantir o apoio da população ao SUS.

As denúncias do mau atendimento já retornaram com força na mídia, atualmente com foco na gestão hospitalar do Rio de Janeiro e na epidemia de dengue. Denúncias sobre falhas de atendimento são necessárias, até porque governos funcionam melhor com pressão social. Todavia, em geral, as denúncias se concentram nas mazelas, sem contribuir para entender o porquê dessa situação, criando assim um ambiente propício para o debate superficial e possibilitando o surgimento de atores com interesses econômicos ou políticos, que se aproveitam da situação para emparedar os gestores de plantão — como se trocar gestores, simplesmente, fosse solucionar os graves problemas do SUS. Quantos gestores de várias tendências partidárias trocamos nos últimos 36 anos? Será que foram todos incompetentes ou temos dificuldades políticas para realizar um diagnóstico correto acerca dos reais problemas que afetam o desempenho do SUS e o seu enfrentamento? É claro que uma boa liderança importa e devemos ter bons critérios para escolhê-las , mas após 36 anos de criação do SUS já ficou demonstrado que só isso não basta para superar os problemas do nosso sistema de saúde.

É preciso ir além do "denuncismo" para enfrentar os problemas do nosso sistema de saúde

Para contribuir nesse debate, relaciono alguns dos principais problemas a serem enfrentados para superar os problemas na prestação dos serviços públicos de saúde: os interesses corporativos, a indicação de gestores para atender a interesses políticos eleitorais ou econômicos, falta de financiamento, falta de políticas adequadas de RH, processos de gestão focados excessivamente em controle de meios ao invés de resultados, falta de continuidade administrativa, a excessiva judicialização, ampliação e melhoria da resolutividade da atenção primária, superação da fragmentação entre os níveis de atendimento, ampliação da digitalização e a regulação adequada do setor privado (trato desse tema mais adiante).

A não resolução desses problemas pelos vários governos que se sucederam, ou sua resolução parcial, é uma fonte importante do descrédito do SUS perante a população e esses problemas não se resolverão só com denúncias Teremos que enfrentar muitos interesses políticos e econômicos articulados no sistema de saúde para fazer valer os interesses dos usuários do SUS. É preciso ir além do ‘denuncismo’.

Portanto, o foco do debate na incompetência do gestor de plantão é uma ‘cortina de fumaça’ que evita a discussão dos complexos problemas organizacionais, legais, políticos e institucionais que afetam o desempenho do SUS. Esse debate precisa ser aprofundado porque a melhoria do atendimento do SUS e o reflexo positivo disso na sua imagem perante a população é fundamental para a manutenção e evolução da sua prestação de serviços ao longo do tempo.

A lógica de competição entre o setor público e o privado dificulta a construção de um sistema único e racional

O descrédito em relação à qualidade e eficiência dos serviços prestados pelo SUS advém também da solução encontrada pelos constituintes de permitir a convivência entre o setor privado e o público na prestação dos serviços de saúde e da incapacidade do setor público de exercer uma coordenação política que fortalecesse a cooperação entre eles. Essa falta de capacidade de coordenação favoreceu uma competição que tem dificultado a construção de um sistema mais racional, desperdiçando recursos nos dois setores e prejudicando o acesso da população aos serviços de saúde. A superação dessa deficiência torna-se cada vez mais premente devido ao envelhecimento da população e à consequente pressão de custos sobre o sistema de saúde, público e privado.

Na disputa pelo mercado estabeleceu-se uma competição por recursos e usuários entre as empresas privadas e entre elas e o SUS. Nesse ambiente, o setor privado se utiliza de estratégias de comunicação que difundem uma imagem de um serviço de qualidade para atrair consumidores. Todavia, sabemos que há uma diferença entre a imagem projetada e a realidade da prestação de serviços, fato nem sempre denunciado na mídia com o mesmo destaque das falhas de atendimento do SUS.

Esse tipo de comunicação do setor privado acaba tendo uma consequência negativa para a imagem do SUS, mesmo que não tenha esse objetivo. A construção imagética de um setor que funciona e outro que não funciona, é um importante fator de desgaste da imagem do SUS. Além disso, há uma percepção da população de que o serviço público, em geral, é pior que os serviços privados e, nesse caso específico, fortalecida pelas falhas de atendimento do SUS. Essa imagem negativa do SUS favorece o argumento que apresenta o setor privado como solução para os problemas de acesso à saúde pela população.

No entanto, o nosso desafio é outro, se trata de fortalecer o SUS e reduzir a participação do setor privado na prestação dos serviços de saúde para cumprir o mandato constitucional, que delega ao setor privado o papel de complementar ao sistema público.

A avaliação dos gastos em saúde demonstra a complexidade desse desafio. O gasto privado é cerca de 56% do gasto total em saúde (público e privado), o que é uma contradição com o texto constitucional que estipula um sistema único, público e universal. Em países com sistemas de saúde semelhantes ao nosso esse gasto é de 20 a 30%. Não vai ser fácil resolver essa distorção, mas o que está em jogo é o acesso da população aos serviços de saúde.

Essa contradição também pode ser constatada pela prática de financiar o setor privado por meio de gastos tributários, como os do imposto de renda das Pessoas Físicas e Jurídicas. Esse incentivo tributário é defendido com o argumento de que o SUS não tem capacidade de atender à população. Argumento falacioso, porque se esses recursos fossem direcionados para o SUS teríamos uma melhoria no seu atendimento e consequente aumento no número dos seus usuários. Importante ressaltar que é vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos pela nossa Constituição. Mais uma contradição com o texto constitucional.

Como podemos constatar, temos um problema de ação coletiva que envolve a mobilização da sociedade e suas instituições políticas. Não podemos esquecer que a criação do SUS só foi possível devido a existência de um amplo movimento político que mobilizou corações e mentes na defesa de um sistema público, único e universal e que desaguou na sua aprovação pelos constituintes em 1988.

Não há ‘salvadores da pátria’. Ou nos unimos em torno do direito à saúde ou vamos continuar reclamando do atendimento do SUS, em detrimento aos mais pobres, que são os mais prejudicados com a falta de acesso pleno aos serviços de saúde.

Já conseguimos essa união uma vez durante o processo constituinte e vêm daí a crença de que podemos superar os desafios atuais do SUS.

Ricardo de Oliveira é engenheiro de produção e foi Secretário Estadual de Gestão e Recursos Humanos do Espírito Santo entre 2005 e 2010 e Secretário Estadual de Saúde do ES de 2015 a 2018. É autor dos livros "Gestão Pública: Democracia e Eficiência" (FGV/2012) e "Gestão Pública e Saúde" (FGV/ 2020). É Conselheiro do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e membro do Comitê de Filantropia da UMANE.

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