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Cidadania requer autonomia, não obediência

É preciso desmilitarizar escolas e educar para a liberdade

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São Paulo (SP)
Silhuetas obscurecidas e enfileiradas de alunos de costas com mochilas em frente a uma paisagem urbana de prédios e um céu nublado.
Meyrele Nascimento/SoU_Ciência

No início deste mês, a atual gestão do MEC comunicou aos Secretários de Educação dos estados e municípios brasileiros o encerramento, até o final deste ano letivo, de seu Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). A partir de 2024, as escolas ligadas ao Programa do MEC encerrarão as atividades do Pecim, reintegrando-se às respectivas redes públicas regulares de ensino, ou poderão aderir a outros programas municipais ou estaduais de escolas militarizadas.

Em São Paulo, no entanto, o governador Tarcísio de Freitas anunciou que pretende implantar um programa próprio de escolas cívico-militares, para manter e ampliar o número de escolas públicas nesse formato no Estado.

Mas no que consiste a militarização de escolas públicas?

Consiste no repasse para militares da gestão das escolas públicas municipais, estaduais e distritais regulares, que vinham sendo mantidas e administradas pelos poderes públicos e respectivas secretarias de educação. O funcionamento de uma escola militarizada baseia-se em práticas pedagógicas e padrões de ensino presentes nos colégios militares do Comando Exército, das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares. Ou seja, com o repasse da gestão, as escolas públicas perdem o seu caráter civil para adotarem princípios e condutas estabelecidos por corporações militares. Para isso, passam a contar com agentes de segurança da reserva que, sem formação pedagógica, passam a cuidar da gestão dos processos administrativos e educacionais das escolas.

O processo de militarização no país teve início da década de 1990, mas ganhou força com a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro. Logo no primeiro dia útil de seu governo, em 02/01/2019, criou no MEC a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares, responsável por implantar o Pecim, com a promessa de repassar R$ 1 milhão ao ano a cada escola que aderisse ao modelo. Um chamariz para escolas que se encontravam em situação precarizada.

O discurso que justificou a formulação desse Programa teve como base a suposição de que poderia promover "melhoria na qualidade da educação básica" e garantir "um modelo de gestão de excelência nas áreas educacional, didático-pedagógica e administrativa" das escolas. Para tanto, foram contratados "militares inativos como prestadores de tarefa por tempo certo para o desempenho de tarefas de apoio à gestão escolar", chegando a ter como adicional um pró-labore de até R$ 9.152,00.

O programa, instalado no MEC com o apoio do Ministério da Defesa, possui atualmente 202 escolas no país, segundo levantamento do UOL, atendendo a aproximadamente 120 mil alunos. A quantidade de escolas é pequena, porém a criação do Pecim propagou o debate e auxiliou a expandir a militarização das escolas públicas no Brasil, difundindo suas práticas educativas extremamente conservadoras.

Mas o que ocorre com estudantes e professores no cotidiano das escolas militarizadas?

Na militarização das escolas, o foco das atenções recai principalmente sobre a disciplina (militar) dos estudantes, a obediência, a valorização da hierarquia institucional e de padrões estéticos e comportamentais conservadores, tendendo a limitar a liberdade de expressão, de consciência e de participação ativa das crianças e jovens no próprio processo educativo. Impede também que aprendam a respeitar e a conviver com a diversidade de pensamentos, crenças, religiões e identidades.

Com isso, o desenvolvimento integral dos jovens e a sua autonomia ficam prejudicados. O cotidiano escolar acaba reforçando a necessidade de aceitação de práticas autoritárias, afastando do ambiente acadêmico o pensamento crítico e a criatividade. Essa realidade está documentada em uma denúncia do Ministério Público Federal com relatos de jovens e docentes sobre práticas punitivas, persecutórias e racistas de militares no interior dessas escolas, fechadas ao diálogo ou à resolução civilizada de conflitos.

O clima escolar, permeado por confronto e hostilidades contra estudantes e docentes, leva ao aumento da violência e da exclusão, contrariamente ao que apregoavam os elaboradores do Pecim, culminando em traumas e afastamento daqueles que não se enquadram ao modelo, reforçando com a evasão escolar as desigualdades sociais e educacionais.

Mas o que pode explicar a excessiva preocupação das escolas cívico-militares com o comportamento e a disciplina de seus jovens?

As escolas cívico-militares ganharam força no âmbito de um governo conservador de ultradireita, que polarizou ideologicamente a sociedade brasileira. Contrário às pautas progressistas de movimentos sociais de contestação, de feministas, de LGBTQIA+, entre outros, a militarização das escolas apareceu como alternativa experimental para manter sob controle, desde cedo, a presença desses movimentos de oposição entre os jovens. Sua estratégia: o domínio dos corpos e a pacificação das mentes dos estudantes.

Encampando a reação estridente de frações conservadoras de nossa sociedade a uma escola acolhedora, democrática e aberta às necessidades sociais dos desprivilegiados, a militarização buscou neutralizar o trabalho de conscientização de alunos sobre a sua condição, o acesso a conhecimentos socialmente valorizados, a convivência com as diversidades e a valorização da vida comunitária.

Mas os arranjos administrativos dessas escolas mostram-se incompatíveis com os princípios da LDB (lei maior da educação), de gestão democrática no ensino público e de obrigatoriedade de oferta de educação pública para todos os brasileiros e brasileiras dos 4 aos 17 anos. Além disso, o atual governo em seu comunicado aos Secretários de Educação deixou claro que a presença de forças militares nas escolas consiste em desvio de finalidade desses agentes, responsáveis pela segurança pública e o combate à criminalidade e não pela Educação.

A qualidade da educação é indissociável de uma gestão democrática, da presença da pluralidade de ideias, da liberdade de ensinar e de aprender. Portanto, a militarização das escolas é um ataque ao direito subjetivo à educação e à cidadania, que requer autonomia dos sujeitos e não sua obediência.

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