Sylvia Colombo

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Sylvia Colombo
Descrição de chapéu América Latina

Tradição de civilidade política no Chile é exemplo para a região

Reconhecimento de derrota e saudações entre rivais ajudam a conter confrontos

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Santiago

Em momentos de exaltação popular, como é o do resultado de uma eleição, não é apenas a festa dos ganhadores que se vê no cenário. Após a derrota do ultradireitista José Antonio Kast, no domingo (19), alguns apoiadores do lado de fora de seu comitê gritavam, enfurecidos: "Kast ganhou, foi fraude vermelha" e "Viva Pinochet, fora o comunismo".

O Chile não é o único país do mundo a ver cenas como esta. Mas, na América Latina, é um dos que melhor lida com os ânimos que podem se tornar violentos por parte dos perdedores.

Ao saber da derrota, Kast imediatamente telefonou para o vitorioso, o esquerdista Gabriel Boric, para cumprimentá-lo. Seus assessores fizeram o possível para que a foto da chamada fosse imediatamente subida às redes sociais, com uma mensagem: "Desde hoje, Gabriel Boric é o novo presidente eleito do Chile e merece todo nosso respeito e colaboração construtiva". Momentos depois, Kast se dirigia ao hotel onde estava o comitê de campanha do esquerdista e conversou com ele. Outro registro que, rapidamente, foi parar nas redes sociais.

Em um telão instalado nas ruas de Santiago, chilenos assistem à ligação do presidente Sebastián Piñera ao eleito Gabriel Boric, na noite de domingo
Em um telão instalado nas ruas de Santiago, chilenos assistem à ligação do presidente Sebastián Piñera ao eleito Gabriel Boric, na noite de domingo - Martin Bernetti/France Presse

Não temos como saber se isso evitará que o "kastismo" se transforme em um movimento de ódio, que tenha propensão a enfrentamentos violentos contra os apoiadores do presidente eleito. Mas, certamente, essas imagens ajudam, e muito, a conter impulsos mais exaltados e anti-democráticos. Ainda que armadas e pouco espontâneas, essas cenas têm um efeito simbólico fortíssimo, o de que os líderes políticos se respeitam e de que o Chile vem antes de suas diferenças _mesmo que, nos próximos anos, continuem sendo opositores políticos.

Assim que os resultados se mostraram consolidados, ocorreu a tradicional ligação presidencial televisionada, na qual vimos, novamente, a cena do presidente em exercício chamando o vitorioso, dando-lhe parabéns e um par de conselhos. Do outro lado, o recém-eleito ouve o mandatário a quem criticou duramente na campanha, mas que, neste momento, deve agradecer e respeitar, celebrando a tradição republicana chilena.

Novamente, isso não significa que Boric não continuará a ser crítico de Piñera. O mandatário, por sua vez, pode não estar feliz pessoalmente em entregar o poder a um garoto que se projetou politicamente protestando nas ruas contra ele. Mas o símbolo é forte e importante. Se algo pode baixar o tom e o nível de enfrentamento político em um país, é uma cena como essa.

Aos que se surpreenderam com essas imagens, vale lembrar que se trata de um excelente costume chileno que vem desde os tempos da redemocratização do país. Seguem aqui alguns dos que os precederam.

Na primeira eleição em tempos de democracia, em 1989, o democrata-cristão Patricio Aylwin, da aliança Concertação, derrotou o direitista Hernán Büchi. Com apenas 55% dos votos contabilizados, mas uma tendência clara a favor de Aylwin, Büchi saiu de seu comitê e foi ao encontro do vencedor, para parabeniza-lo. Era um momento crucial para o Chile, pois o país estava saindo de uma cruel ditadura. O general Pinochet e as Forças Armadas, por sua vez, estavam de olho no processo.

O presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, à esq., encontra-se em Santiago com o candidato derrotado, Jose Antonio Kast, após definição da eleição
O presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, à esq., encontra-se em Santiago com o candidato derrotado, Jose Antonio Kast, após definição da eleição - Reprodução

Em 1993, o vencedor foi o também democrata-cristão Eduardo Frei Ruiz-Tagle. Igualmente, no momento em que a contagem de votos mostrava uma tendência irreversível, o candidato direitista derrotado, Arturo Alessandri saiu a cumprimentar o vencedor e posar com ele para uma foto.

Na mesma noite, Frei recebeu a ligação, desde o palácio de La Moneda, do presidente em exercício, Patricio Aylwin, felicitando-o. As chamadas ainda não eram televisionadas, mas a íntegra da conversa foi imediatamente divulgada aos meios de comunicação. No dia seguinte, ambos se encontraram no palácio presidencial.

O socialista Ricardo Lagos venceu o segundo turno, em 2000, contra o direitista Joaquín Lavín. Conhecido o resultado, o direitista foi também ao encontro do ganhador e disse: "Saiba que pode contar sempre comigo. Estou à sua disposição para lutar para superar os problemas dos chilenos. Sem a mesquinhez da política pequena, sem questionar os consensos do sistema político e econômico".

Na mesma noite, Lagos recebeu a ligação telefônica de Frei, que o cumprimentou e o convidou para tomar o café da manhã em sua casa no dia seguinte.

Em 2005, a centro-esquerdista Michele Bachelet venceu, no segundo turno, o atual presidente chileno, Sebastián Piñera. Conhecido o resultado, Piñera cumprimentou Bachelet "não só porque será a primeira presidente mulher do Chile, mas também como uma homenagem a essas milhares de mulheres que, com esforço e tenacidade, conseguiram o lugar que lhes corresponde". No dia seguinte, Lagos tomou café-da-manhã na casa da sucessora.​

Na eleição seguinte, Piñera saiu vencedor contra Frei, marcando o retorno da direita ao poder no país. O derrotado foi ao hotel onde estava armado o comitê de campanha do eleito e disse "a maioria dos chilenos lhe deu sua confiança e por isso desejo sucesso em sua gestão". Logo, a presidente em exercício, Michelle Bachelet, telefonou para Piñera, quando pela primeira vez a conversa pós-eleição entre ganhador e mandatário passou a ser exibida por todos os canais de TV. Esta lhe felicitou e pediu-lhe que permanecesse no "caminho da Justiça e do progresso social". Piñera respondeu que valorizava a "experiência" da então presidente.

Em 2013, Bachelet voltou a ser eleita, desta vez depois de um segundo turno contra a direitista Evelyn Matthei. Com o resultado encaminhado, Matthei foi ao encontro de Bachelet para cumprimentá-la. Pouco depois, foi Piñera quem telefonou para felicitar Bachelet: "Os chilenos se expressaram com claridade e desejo-lhe grandes êxitos". A mandatária eleita respondeu: "Serei a presidente de todos os chilenos e quero conquistar a confiança também dos que não votaram em mim, porque será necessária para as mudanças que precisamos fazer". Piñera a convidou, então, a tomarem café-da-manhã juntos no dia seguinte.

Na eleição seguinte, a chamada telefônica se repetiu, mas desta vez às avessas. Piñera foi quem saiu vencedor no segundo turno contra o independente Alejandro Guillier. Bachelet telefonou, novamente, diante das câmaras, e lhe disse: "Desejo-lhe uma excelente gestão, sabemos que você e eu queremos o melhor para o Chile". Ao que Piñera respondeu: "quero pedi r algo, porque sei que sua experiência e sabedoria podem nos ajudar muito nos caminhos do futuro, espero poder contar com seus conselhos". Desta vez, foi Bachelet quem afirmou que iria à casa de Piñera para tomar o café-da-manhã do dia seguinte.

Obviamente tais gestos não eliminam as rusgas e fricções políticas nem os enfrentamentos que se deram em todos esses governos. Mas demonstrar civilidade e respeito é uma marca do Chile que vendo sendo reforçada a cada eleição e que enche de esperança e tranquilidade aqueles que esperam continuar vivendo em uma democracia. Por mais teatrais que sejam, são um símbolo importante que tem um potencial claro de conter ânimos exaltados e de evitar a violência verbal e física entre rivais ideológicos.

Uma tradição que o Chile cultiva e que deve ser celebrada. E que tantos outros países, principalmente o Brasil atual, às vésperas de uma disputada e inflamada eleição, deveriam imitar.

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