Thaís Nicoleti

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Thaís Nicoleti

Palhaços e professores de português

Novos tempos: sentido literal se sobrepõe à metáfora, e tradição da língua sai de moda

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Cena de "Os Palhaços", de Federico Fellini
Cena do filme "Os Palhaços" (1970), dirigido por Federico Fellini - Divulgação

Faz pouco tempo, o articulista Gregorio Duvivier queixava-se em sua coluna de não haver classe mais desunida que a dos comediantes, na qual ele se inclui: "Não há classe mais desunida que a dos comediantes. Eu mesmo, quando me vejo ultrapassado no trânsito, grito: ‘palhaço!’ —mesmo que não haja nenhuma evidência de que o motorista trabalhe no mesmo ramo que eu. Não conheço nenhum outro profissional que tenha sua profissão em tão baixa conta. Um cirurgião que entra numa briga de bar não começa a berrar: ‘Eu por acaso tenho cara de médico? Vocês vão ficar de medicina com a minha cara?’".

Pois Duvivier está preocupado com o uso depreciativo da palavra "palhaço", que estaria, de alguma forma, a ofender os palhaços profissionais, reclamação que, há algum tempo, se tem ouvido a sério nas redes sociais. É a metáfora, pessoal. Talvez a profissão que mais tenha sofrido enxovalho, particularmente no trânsito, tenha a sido de "barbeiro", que até os dicionários registram como sinônimo de mau motorista e, mais ainda, como aquele que "é imperito, incompetente na realização de seu trabalho" (Houaiss).

O que temos contra os barbeiros, afinal? Nada, ao que tudo indica. Talvez a associação venha do fato de certos motoristas "cortarem" a passagem dos outros ou passarem rentes aos outros carros, "tirando um fino". Também se diz que esses "barbeiros" do volante "costuram" no trânsito quando dirigem em zigue-zague, cortando os outros automóveis – e nem por isso estamos ofendendo os costureiros (ou estamos?).

A mais antiga das profissões, hoje reconhecida, costuma ser lembrada no mais recorrente dos nossos palavrões: o filho da, digamos, profissional do sexo – ou o "filho da outra", como elegantemente diria Chico Buarque. O palavrão é dos mais ofensivos, considerado chulo, de baixo calão e tudo o mais, mas, se tomado ao pé da letra, não quer dizer nada nos dias de hoje. O problema, na verdade, está em querer tomar tudo em seu sentido literal, ignorando o processo silencioso da ressignificação, que se vai processando lenta e imperceptivelmente, que é, aliás, como ocorrem as mudanças na língua.

Dito isso, a mim parece que chamar alguém de "palhaço", ainda que seja um uso pejorativo, não constitui ultraje aos profissionais da comédia. O termo, usado como xingamento, é uma ofensa leve ao interlocutor, que consiste basicamente em dizer que ele não pode ser levado a sério. Frases como "Você está de brincadeira!", "Não brinca!", "Fala sério", "Não me faça rir" acionam esse mesmo par semântico sério/não sério, em que o que é "sério" é a "verdade". Daí para associar o palhaço ou a palhaçada à falta de seriedade ou de responsabilidade é um pulinho.

Veja-se o caso de "fazer arte", expressão usada para falar das traquinagens infantis, provavelmente ligada a uma das acepções de "arte" (a de habilidade ou astúcia para enganar, a "arte de fazer alguma coisa"). Não vale dizer que a classe dos artistas está sendo injuriada pela língua portuguesa. Bem, o contexto é que vai determinar o sentido.

Ter a profissão em baixa conta

Duvivier também disse que não conhece outro profissional, a não ser o comediante, que tenha sua profissão em tão baixa conta. Ao que tudo indica, porém, a cotação na Bolsa das Redes Sociais anda baixa para os professores de português, revisores, "consultores midiáticos" e formuladores de questões de concursos públicos, esse bando de ignorantes que estariam fazendo "um estrago incalculável" na "autoestima linguística e na qualidade do português que se aprende nas escolas". Essa é a opinião do articulista Sergio Rodrigues, que assim a enuncia em seu artigo:

"Num livro de anos atrás, o mesmo Faraco cunhou a impagável expressão ‘norma curta’ para nomear o cipoal de regras bestas e pegadinhas que ainda hoje assombra o senso comum e sustenta um aparato normativo que envolve professores de português, revisores, consultores midiáticos e formuladores de concursos.

Mais conservadores do que os velhos gramáticos conservadores –mesmo porque mais ignorantes–, os guardiães da ‘norma curta’ fazem um estrago incalculável em nossa autoestima linguística e na qualidade do português que se aprende nas escolas".

O artigo de Rodrigues, a propósito de recomendar o ótimo livro de Carlos Alberto Faraco e Francisco Eduardo Vieira, intitulado "Gramática da Norma de Referência" (Parábola, 2022), desferiu críticas genéricas a profissionais que também gostariam de aconselhar a seu público a leitura da mesma obra, afinal mais apropriada a quem estuda o português nas salas de aula do que aos diletantes.

Diga-se, de passagem, que a obra tem o mérito de sistematizar a colocação pronominal brasileira, que sabemos estar distante da portuguesa, abraçando uma tarefa negligenciada pelas gramáticas da tradição, mas que está longe de fazer ruir o edifício do saber consolidado por essa mesma tradição – e, aliás, não parece ser esse o seu objetivo ("muitos verbos podem ter duas ou mais regências validadas por algumas boas gramáticas contemporâneas e alguns bons dicionários de regência verbal", dizem os autores, antes de advertir sobre as variantes "interditadas da escrita formal por uma série de gramáticas e dicionários desatualizados, bem como por livros didáticos e sites de dúvidas gramaticais na internet que pouco dialogam com as pesquisas e os debates linguísticos acerca de questões normativas").

O articulista, porém, vai mais longe e sugere que os guardiães da "norma curta" de Faraco são defensores da "elite branca", que se recusam a "abraçar a língua mestiça das ruas" e, para bem encerrar o texto, aciona, ainda que sutilmente, a imagem de Bolsonaro , mais suja que pau de galinheiro, e propõe que se ensine aos brasileiros a língua que os brasileiros falam.

Muito bem "trovado", mas, entre mortos e feridos, saem os professores de português, os revisores, os "consultores midiáticos" e os formuladores de questões de concurso, todos juntos, de mãos dadas com o Bolsonaro, em defesa da "elite branca", recusando-se a abraçar a "língua mestiça das ruas".

A mim parece que o livro de Faraco e Vieira merece uma discussão mais profunda, talvez em linguagem menos "sexy" que a do escritor e, sobretudo, sem desmerecer o empenho de tantos profissionais e estudiosos que se dedicam, ainda que fora do circuito acadêmico, à difícil arte de ensinar e à trabalhosíssima e democrática tarefa de tornar legíveis textos que, de tão complexos em sua sintaxe, mais parecem labirintos impenetráveis.

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