Thaís Nicoleti

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Língua é progressista, reacionária ou nada disso, muito pelo contrário?

A língua e a literatura (uma palavra sobre Nélida Piñon)

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Nélida Piñon (1937-2022), com sua cadelinha Pilara Piñon: “Ela é tremenda, brilhante, alegra os meus dias”, disse a escritora
Nélida Piñon (1937-2022), com sua cadelinha Pilara Piñon: 'Ela é tremenda, brilhante, alegra os meus dias', disse a escritora - Arquivo pessoal

Dia desses, soube que, na nossa praça pública virtual, se travava um interessante debate sobre a língua portuguesa, que, em suma, se resumia a distinguir entre a postura progressista e a postura reacionária (ou "fascista") em relação ao idioma. A defesa do aprendizado da norma culta coube aos "reacionários", enquanto o ataque à valorização desse registro formal reunia os "progressistas". Posta dessa forma, a discussão cai na polaridade ideológica e o público tende a se alinhar segundo o posicionamento de seu grupo (ou de sua "bolha"), o que, em geral, abrevia o debate, logo dando lugar a outra polêmica qualquer.

Segundo a tese progressista, o que chamamos de norma culta é o registro linguístico das classes dominantes, que, exatamente por sê-lo, seria "elitista" ou excludente. Hoje, soma-se a essa ideia a de que nem mesmo uma boa parte dessa classe dominante brasileira domina à perfeição essa norma, o que faria dela, em grande medida, uma norma obsoleta, um padrão antiquado ou mesmo "subserviente ao modelo colonizador eurocêntrico".

Se está na ordem do dia contar a história do ponto de vista dos historicamente excluídos e estimular ações concretas (queima de estátuas, destruição de símbolos etc.) para "recontar" o passado, analogamente parece estar em curso uma tentativa de derrubar a norma culta do pilar em que ainda se encontra e promover a "diversidade linguística". Nesse caso, cada um se expressaria como achasse melhor em qualquer circunstância, tese que parece bem razoável quando vista apenas do ponto de vista de certo ativismo político.

A tese progressista é sempre mais sedutora (e mais o seria se não fosse abraçada tão facilmente pelo sistema). Por que dizer "nós vamos" se a desinência "-mos" carrega a mesma informação contida no pronome "nós"? A formulação "nós vai", por exemplo, é mais econômica, pois suprime a redundância, que é parte do sistema de concordância. Mais que isso, dizer "nós vai" pode ser algo libertário ou mesmo revolucionário. Pode, mas só enquanto representar um contraponto a uma norma estabelecida. Destruída a norma, "nós vai" se institucionaliza e passa a ser a nova norma. Ou, como aparentemente se deseja, as normas conviveriam todas em harmonia, com o mesmo peso. Será?

Para começar a mudança, talvez os textos pudessem ter um salutar percentual de desvios da norma, outro percentual de estrangeirismos (os que porventura não o tivessem espontaneamente), um percentual de gírias locais, enfim, os textos poderiam ser mais "diversos", refletindo a língua efetivamente falada pela sociedade. Bem, chega de imaginação.

Quem tem de enfrentar as consequências desses debates são, em geral, os professores nas salas de aula. A eles cabe a parte prática de incorporar essas teses libertárias ao cotidiano da sala de aula ou bater na tecla da importância de dominar a norma dos espaços de poder e, ao mesmo tempo, estimular os jovens a ler os autores da nossa literatura, aqueles que, com sua inteligência e imaginação, cultivaram a língua portuguesa em todos os seus recursos.

Como se sabe, nem todos os estudantes se transformarão em leitores de literatura, principalmente nestes tempos de muita pressa para chegar a lugar algum. Aqueles que se aventurarem nesse mergulho, em que o tempo é suspenso e somos levados para outros mundos, esses, por certo, saberão dar valor à língua que, sim, nós herdamos do colonizador – do qual, a propósito, muitos de "nós" descendem – e cultivamos à nossa maneira, língua que é repleta de recursos e cujo conhecimento é mais que uma vestimenta de luxo para frequentar ambientes "elitistas".

Literatura requer tempo e um pouco de solidão. A leitura de um livro nos faz adentrar cenários que se constroem com palavras e conhecer pessoas também feitas de palavras, que nos deixam saudade quando o livro se fecha. Escritores transformam palavras e frases (as mesmas que usamos na comunicação) em arte e, assim, somos levados à fruição da linguagem como fruímos música ou pintura.

É para ler os artistas da palavra que aprendemos os recursos da língua e é porque os lemos e vivenciamos em profundidade a experiência que generosamente compartilham conosco que queremos conhecer mais e mais os meandros dessa língua que nos conduz à sua alma.

Ninguém deveria ser privado da experiência da leitura de romances, que é a melhor forma de aprender a língua. O debate público bem poderia sair da superfície e estimular o avanço do conhecimento. Aos professores cabe a tarefa de ensinar os alunos a ler literatura – e a língua estará lá em seu esplendor.

Nota triste

Soubemos desde o sábado 17 de dezembro do falecimento da querida escritora Nélida Piñon, que tive o grande prazer de conhecer há alguns meses, quando estive na Academia Brasileira de Letras para entrevistar o professor Evanildo Bechara. Alegre e comunicativa, foi ela quem me abordou e, elogiando um casaco que eu usava no friozinho carioca de julho, quis saber o que eu fazia por ali. Foi um presente para mim.

Animada, entusiasmada e com uma inteligência viva, soltava frases e não economizava posicionamentos, coisa que hoje muita gente tem medo de fazer. No momento de tirar uma fotografia do meu entrevistado, diante da estátua de Machado de Assis, foi Nélida quem roubou a cena. Os acadêmicos que passavam vinham todos abraçá-la – e havia abraços para todos. Foram muitas fotos, troca de telefone e, depois, algumas conversas e a promessa de uma futura entrevista sobre seu livro mais recente (2020), "Um Dia Chegarei a Sagres", que se tornaria o último. Quando se foi, Nélida estava em Portugal, cenário do romance.

Ela se prontificou a divulgar a reportagem sobre o prof. Bechara, que logo distribuiu no grupo de WhatsApp dos Imortais e, como assumiu em seguida a presidência interina da ABL, mencionou a matéria no plenário da casa. "Tenho muito entusiasmo pelas coisas", ela me disse. Fará falta como pessoa, mas a literatura a fez imortal.

Ela deixa, além de todos os familiares, amigos e leitores, a sua cachorrinha, chamada Pilara Piñon, nome que seu avô Daniel queria ter dado a ela própria. Nélida, cujo nome é um anagrama do nome desse avô, disse que o nome de sua companheirinha ("tremenda, brilhante, que alegra os meus dias") era também uma homenagem a ele.

Deixo abaixo um trecho do seu último romance para que os leitores possam experimentar um aperitivo desse prazer da leitura que é tão importante cultivar. Pelas palavras, a escrita nos conduz a uma experiência única, na medida em que reconstruímos em nosso imaginário aquilo que lemos.

"Era madrugada, fazia frio, e eu cobria o corpo com um cobertor gasto, o único que havia na casa. À luz da vela, enxergava os objetos sobre o aparador como fantasmas que ia afugentando com gestos esparsos. Eles, mais persistentes que a minha vontade, me dão combate, formam na parede silhuetas que não identifico com nitidez. A vida, que é precária, pulsa no meu peito, oferta-me certo frescor que a minha memória, afundada no inferno, recusa. Graças a essas lembranças visito a aldeia em que nasci e revivo à força.

A despeito de minha triste rebeldia, atribuo formas disformes às migalhas de pão que se espalham sobre a mesa. Enquanto acato os produtos da terra, que são poucos na casa, como que vivo de farelos. Sem eles, contudo, não estaria aqui, nesta colina de Lisboa, uma das sete existentes, pela qual perambulo amparando-me nas paredes das casas para não tombar. Após deixar as terras do avô e instalar-me em Lisboa, em Sagres, e depois no mundo, aqui retornei. Quem sou eu sem as ruínas das urbes humanas e sem os pedaços da minha existência? Quem sou eu sem estas histórias, meus escombros?"
(In: "Um Dia Chegarei a Sagres". Rio de Janeiro: Record, 2020)

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