Morre Nélida Piñon, pioneira na presidência da Academia Brasileira de Letras, aos 85

Escritora, que esteve à frente da instituição, foi um dos nomes mais conhecidos da literatura brasileira no mundo todo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

A escritora Nélida Piñon morreu neste sábado, em Lisboa, aos 85 anos. A informação foi confirmada por Rodrigo Lacerda, editor na Record, casa que publicou livros da autora. A causa da morte não foi informada.

Com ela, não é só um dos nomes de maior prestígio internacional da nossa literatura que se vai. E estamos falando da única pessoa da literatura brasileira a fazer parte do boom latino-americano dos anos 1960 e 1970, do qual fizeram parte nomes como Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez. Feito que também se repetiu quando ela ganhou o Prêmio Príncipe de Astúrias, em 2005, derrotando Philip Roth e Amos Oz.

A escritora Nélida Piñon - Philippe Desmazes/AFP

Traduzida para inglês, espanhol, galego, francês, italiano, russo e chinês e publicada em mais de 20 países, a escritora e imortal, quinta ocupante da cadeira de número 30 da Academia Brasileira de Letras, tem como legado não só uma obra composta por nove romances, três livros de contos e coletâneas de memórias, fragmentos e ensaios.

É alguém que, dentro e fora do Brasil, lutou pela literatura como parte da construção de um país. Foi, por exemplo, a principal responsável pela divulgação de Machado de Assis no exterior, apresentando o autor à escritora americana Susan Sontag.

Uma figura delicada, gentil e generosa que, por vezes, fazia seu interlocutor pensar se era real, num mundo tão pouco afeito à delicadeza. O poeta francês Rimbaud disse ter perdido a vida por delicadeza. Piñon, certamente, construiu sua vida a partir dela.

Nasceu no Rio de Janeiro em 3 de maio de 1937. Aos dez anos, foi para a Galícia, na Espanha, onde viveu no interior, como uma pastorinha, com um cajado, conduzindo vacas e ovelhas. "Ficava o dia todo sozinha", dizia. No cinto, um pão de milho, presunto feito dos porcos da avó e frutas.

"Ia para a montanha e achava que era o Himalaia. Era pequenininha." Estudou galego, apresentou canções e danças típicas. "Fui numa escolinha galega dos camponeses. Tive amigos. Namorei um galegozinho", ela se lembrou, rindo, numa entrevista.

Já nessa época, desenvolveu algo que a acompanharia por toda a vida e influenciaria sua literatura, o gosto pela preservação da memória e a formação de acervos. "Desde menina eu guardava tudo", contou. A mãe perguntava "por que você gosta tanto de papel?", e ela respondia "ah, mãezinha, porque eu gosto".

Sua estreia na literatura foi em 1961 com "Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo". Quem vê Piñon como um dos nomes mais internacionais da literatura brasileira, assim como Jorge Amado e Paulo Coelho, pensa que foi um caminho fácil. Nada disso. Ela teve de se construir com tenacidade. E talvez por isso tenha chegado tão longe. Num caminho sólido.

"Tive campanhas de escritores que sistematicamente me atacavam. Teve um escritor que dizia ‘nunca seja como Nélida Piñon’. Mas eu nunca desisti. Nunca fiz disso matéria de ressentimento. Quando você tem um trabalho sério, as coisas ocorrem. As coisas têm seu tempo", ela dizia. Seu segundo livro, "Madeira Feito Cruz", saiu dois anos depois.

Foi nessa época que teve início o chamado boom latino-americano, com o sucesso editorial de autores como Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez e o mexicano Carlos Fuentes nos mercados europeu e americano.

Nélida Piñon foi um caso à parte nesse fenômeno articulado por escritores e pela agente literária espanhola Carmen Barcells, morta em 2005, partindo de Barcelona. Não só por ser brasileira, mas por ser mulher.

Piñon batalhou muito por seu espaço no exterior. Como contou em entrevista a este jornal em junho, muito antes de sonhar em ser a primeira brasileira a ganhar o Juan Rulfo e ter uma biblioteca com seu nome na Universidade de Miami —onde também tem um dia com seu nome—, a autora ocupava um cantinho na mesa nos eventos.

"Eu era uma brasileirinha, meu bem. Não tinha um nome, família nem nada. Mas eu sempre me comportei muito bem. Tive uma boa educação. Minha mãe era fina e me educou muito bem."

Mas não deixava passar uma oportunidade sempre que o microfone passava por perto. Viagens, palestras, aulas —às vezes com apenas duas noites de hotel pago— eram um jeito de pagar as contas. Piñon ia e voltava com o dinheiro, que entregava para a mãe, para pagar as contas da casa. "Minha mãe dizia ‘vá, aceita, as coisas vão ser mais fáceis com você reconhecida no exterior.’"

Foi também na década de 1960 que teve início sua amizade com Clarice Lispector. Chegou a ser chamada de "carbono" da autora, que se preocupou em perder a amizade por essa crítica. O que nunca aconteceu.

As duas falavam pouco sobre literatura. Por impaciência de Clarice com o tema. Mas a amizade se manteve até os momentos finais da autora de "A Hora da Estrela". Piñon esteve ao seu lado, junto da secretária da autora, Olga Borelli, em seu leito de morte.

Foi também muito amiga da escritora e imortal Lygia Fagundes Telles, que morreu em 3 de abril deste ano. Piñon era, sobretudo, admiradora da Lygia contista. A autora de "Antes do Baile Verde" pleiteou a Piñon, na época em que esta presidiu a ABL, que se trocasse o chá pelo vinho nos encontros semanais da instituição.

Nos anos 1980, se trancou numa pensão em Congonhas, em Minas Gerais, para escrever "A República dos Sonhos", publicado originalmente em 1984.

O romance, cuja edição mais recente tem 736 páginas, é considerada sua principal obra e narra a história de Breta, que reconstitui a partir de fragmentos a vida dos antepassados galegos, recompondo assim a história do Brasil, a partir da história do avô, Madruga, jovem camponês que começa sua saga brasileira na praça Mauá, no Rio de Janeiro. A obra, que acaba de ganhar tradução para o chinês, tem ganhado uma nova geração de leitores e estudiosos pelo mundo todo.

Em 27 de julho de 1989, dois anos depois da publicação de "A Doce Canção de Caetana", foi eleita para a Academia Brasileira de Letras, sucedendo Aurélio Buarque de Holanda e sendo recebida em 3 de maio de 1990 pelo acadêmico Lêdo Ivo.

Em 1997, um ano depois de ser a primeira mulher e o primeiro nome em língua portuguesa a ganhar o Prêmio Juan Rulfo, foi a primeira mulher, em cem anos, a presidir a Academia Brasileira de Letras, no ano de seu primeiro centenário.

"No discurso citei meu avô Daniel. Ele me ofereceu de presente a majestade a língua brasileira. Foi por causa dele que eu nunca pedi a cidadania [espanhola]", contou a este jornal. "Para me agradar tem que citar três nomes —Homero, Machado de Assis e meu avô Daniel."

Com Machado, aliás, a autora manteve um diálogo profícuo ao longo de suas décadas na instituição, parando para conversar com sua estátua.

"Se o Machado de Assis existiu, o Brasil é possível. O Brasil está proibido de fracassar. Ninguém tem Machado de Assis impunemente na sua história. Ele tinha tudo em contra. Gaguejava, epilético, autodidata, pobre, negro."

"Como é possível que Machado, esse menino, pôde chegar às culminâncias da criação brasileira, sendo admirado por todo mundo, considerado o maior escritor, sendo presidente da academia, onde morreu", segue. "Fizeram uma máscara mortuária dele? Quem teve máscara mortuária no Brasil? Eu não conheço. Ele venceu o preconceito. E venceram o preconceito e o racismo em relação a ele. Pelo gênio dele."

Suas duas obras preferidas do autor eram "Dom Casmurro" e "Esaú e Jacó". "Acho ‘Dom Casmurro’ extraordinário. Aí está o primado da ambiguidade. O Dom Casmurro só denuncia a mulher depois que todos os personagens estão mortos. 'Esaú e Jacó' é o livro que mais explica a sociedade brasileira. Está tudo lá."

Esse prestígio, no entanto, nunca teve a mesma correspondência no Brasil. Questão que, à sua maneira, incomodava a autora. "Eu acho que sou respeitada aqui. Se eu tivesse ganhado hoje o Príncipe de Astúrias teria sido diferente. Tive, realmente, manifestações que nenhum outro brasileiro teve. Os prêmios que ganhei. As cátedras que ocupei, Harvard, Miami, Johns Hopkins, Sorbonne. Acho que aqui não corresponde. São as circunstâncias." Incomodava a autora, no entanto, tocar nessa questão.

Seu último romance foi "Um Dia Chegarei a Sagres", de 2020, que custou uma longa pesquisa em Portugal. A autora vinha passando boa parte de seu tempo em Lisboa, onde morreu.

Neste ano, Nélida Piñon doou parte de seu acervo pessoal ao Instituto Cervantes do Rio de Janeiro, formando a maior biblioteca de obras galegas do Brasil. Pouco tempo antes, havia recebido a nacionalidade espanhola, que sempre se negara a pedir, por acreditar que o avô, Daniel, não havia cruzado o Atlântico rumo ao Brasil por meio acaso. De fato, não.

A ABL fará uma cerimônia chamada Sessão da Saudade em homenagem à autora no dia 2 de março, num salão da própria entidade, que tem sede no Rio de Janeiro. O corpo de Piñon deve ser trazido ao Brasil para que o sepultamento ocorra no Cemitério São João Batista, no bairro carioca Botafogo, ainda sem data confirmada.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.