Thaís Nicoleti

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Thaís Nicoleti

A luta contra as palavras

No futuro, teremos uma linguagem verdadeiramente neutra?

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De uns tempos para cá, nossa sensibilidade linguística parece ter-se exacerbado. Antes, havia palavras proferidas com o intuito de ofender, os chamados palavrões. Bons tempos! As coisas eram mais claras, pois todos sabíamos quais eram os termos, de fato, insultuosos. Hoje, a qualquer momento, podemos ser pilhados em flagrante delito linguístico ao usar corriqueiramente alguma palavra cujo teor preconceituoso, recém-desvelado por algum perscrutador de ignomínias, nos tenha escapado.

O Tribunal Superior Eleitoral, por exemplo, deu-nos a conhecer uma lista de termos e expressões considerados racistas pela Comissão de Igualdade Racial, entre os quais aparece o verbo "esclarecer". Segundo os autores do texto, o racismo estaria embutido no termo por ele sugerir que "a compreensão de algo só pode ocorrer sob as bênçãos da claridade, da branquitude, mantendo no campo da dúvida e do desconhecimento as coisas negras".

Foto mostra diversos dados de madeira com letras diferentes nas faces
Emaranhado de letras em dados de madeira para formar palavras - Blickpixel/Pixabay

Se assim for, expressões como "deixar claro" ou "é claro que", de largo uso, padecem do mesmo vício de origem. A sugestão dos signatários do documento é "o uso das palavras ‘explicar’ ou ‘elucidar’, por exemplo" em substituição a "esclarecer". "Explicar", na origem, é desdobrar, já que vem do latim "plico, as, are", ou seja, "dobrar", mas "elucidar" tem "lux" ("luz") na raiz. Ora, se é racista a singela ideia de que a luz (ou a claridade) nos ajuda a enxergar melhor, o mesmo teria de valer para "elucidar". Por algum motivo obscuro, porém, "elucidar" passou incólume pelo crivo da comissão.

Talvez, no entanto, a própria ideia de "enxergar" já contenha em si algum viés capacitista. Afinal, há pessoas que enxergam e pessoas que, embora não enxerguem, captam o universo à sua volta com riqueza de detalhes. Há quem diga que os deficientes visuais desenvolvam muito mais os outros sentidos, o que os faz perceber com grande acuidade coisas que independem da claridade, como sons, odores, temperaturas etc.

Segundo o dicionário Houaiss eletrônico, que constantemente recebe atualizações, o termo "cego", quando usado no sentido de "deficiente visual", pode ser ofensivo. Notemos que os lexicógrafos foram hesitantes, preferindo não tachar o termo, de uma vez por todas, de depreciativo. "Cego", do latim "caecus, a, um", quer dizer "escuro, negro, obscuro, espesso". Para além do sentido estrito, já no latim o termo era usado no sentido figurado. Da expressão "caecus cupiditate", herdamos o usual "cego pela paixão". É dessa mesma raiz que vem o termo "obcecado", isto é, "cegado" – a palavra está associada ao espírito; é este que está no escuro, incapaz de fazer um julgamento lúcido da situação. De novo, estamos às voltas com as ideias de claridade e escuridão, ligadas naturalmente ao dia e à noite.

O adjetivo "cego", no sentido metafórico, costuma descrever aquilo que não tem medida, que foge ao controle da razão (paixão cega, entusiasmo cego, ódio cego, submissão cega), não sendo nem bom nem mau em si. Um entusiasmo cego pode ser a atitude de quem acredita de fato no que faz, um ódio cego pode ser sede de vingança. Enfim, o termo pode ser empregado para enfatizar uma ideia. Foi assim, aliás, que o usou Milton Nascimento na canção "Fé Cega, Faca Amolada", em que a fé é inabalável. Vale notar que a lâmina sem corte, ao contrário da "amolada", também é chamada de "cega" – daí o jogo de palavras usado na letra da canção.

Um nó difícil de desatar é logo chamado de "nó cego" – talvez fruto da ideia de ser muitíssimo apertado, uma variação da noção de ênfase associada ao termo. O bonito da língua é essa maleabilidade, esse leque de associações que se constroem solidariamente entre os falantes sem que se possa saber ao certo quem inventou o quê. Quer mais? Com o acréscimo de um hífen, "nó-cego" passa a ser mais um dos muitos nomes da aguardente de cana.

A expressão "às cegas", que quer dizer "às escuras" ou "tateando no escuro, sem ver", é frequentemente usada pelos "sommeliers" em suas conhecidas "degustações às cegas", ocasiões em que experimentam os vinhos sem ver os rótulos. Dessa forma, libertam-se das informações prévias que poderiam influenciar seu julgamento sobre a bebida, entregando-se voluntariamente à escuridão que faz aflorar o olfato e o paladar.

Nem sempre "às cegas" terá esse sentido de fugir da luz para mergulhar em outras sensações. A expressão também serve para situações em que se faz alguma coisa sem raciocinar, como sair sem rumo. A razão, de fato, está associada à luz. Não à toa o movimento de ideias do século 18 chamou-se Iluminismo, Ilustração ou Século das Luzes. "Ilustrar", a propósito, significa "transmitir conhecimentos", daí uma pessoa "ilustrada" ser uma pessoa sábia, culta, dotada de conhecimentos.

Em 2008, por ocasião do lançamento do filme "Blindness", baseado no livro "Ensaio sobre a Cegueira", do português José Saramago, houve protestos, sobretudo nos Estados Unidos, organizados pela National Federation of the Blind, associação de cegos (ou de "invisuais") americanos. Alegou-se que os cegos eram tratados no filme (e no livro) como "incompetentes, porcos, viciosos e depravados", o que parece ser uma leitura muito rasa da obra – afinal, os cegos de Saramago não são uma parcela da sociedade que apresenta deficiência visual, mas toda a sociedade posta subitamente numa situação-limite. É uma história de todas as pessoas, do nosso modo de vida etc., um convite à reflexão sobre nós mesmos. Na epígrafe do romance, que Saramago extrai do "Livro dos Conselhos", lemos o seguinte: "Se podes olhar, vê; se podes ver, repara". Não parece estar o autor a discriminar pessoas que tenham algum tipo de deficiência; antes afirma que se pode olhar sem ver ou ver sem reparar.

Hoje se fala tanto em dar "visibilidade", em tornar "visíveis" os "invisíveis" como passo inicial da luta por direitos. Estaria também esse termo inadequado por superestimar o valor da visão, ainda que metaforicamente, na sociedade? Quem dirá qual metáfora é válida e qual deve ser abolida?

Em suma, a tarefa a que se entregam os purificadores da língua parece ser uma infinita corrida de obstáculos. Se, no entanto, for mesmo esse o caminho a seguir para tornar o mundo um lugar mais saudável, talvez possamos criar uma linguagem verdadeiramente neutra, construída com números e letras aleatórias, como as placas de automóvel, coisa que alguma sofisticada inteligência artificial poderia vir a elaborar.

Aos saudosistas restarão o Museu da Língua Portuguesa, que, aliás, já existe, e as bibliotecas que não tiverem perdido de vez o sentido. Hoje luta-se contra as palavras. Bons tempos aqueles em que o poeta lutava com as palavras. Deixo, a seguir os versos de Carlos Drummond de Andrade, um apaixonado pelas palavras – por todas as palavras.

Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã./São muitas, eu pouco./ Algumas, tão fortes/ como o javali./ Não me julgo louco./ Se o fosse, teria/ poder de encantá-las./ Mas lúcido e frio,/ apareço e tento/ apanhar algumas/ para meu sustento/ num dia de vida./ Deixam-se enlaçar,/ tontas à carícia/ e súbito fogem/ e não há ameaça/ e nem há sevícia/ que as traga de novo/ ao centro da praça.//

Insisto, solerte./ Busco persuadi-las./ Ser-lhes-ei escravo/ de rara humildade./ Guardarei sigilo/ de nosso comércio./ Na voz, nenhum travo/ de zanga ou desgosto./ Sem me ouvir deslizam,/ perpassam levíssimas/ e viram-me o rosto./ Lutar com palavras/ parece sem fruto./ Não têm carne e sangue…/ Entretanto, luto.//

Palavra, palavra/ (digo exasperado),/ se me desafias,/ aceito o combate./ Quisera possuir-te/ neste descampado,/ sem roteiro de unha/ ou marca de dente/ nessa pele clara./ Preferes o amor/ de uma posse impura/ e que venha o gozo/ da maior tortura.//

Luto corpo a corpo,/ luto todo o tempo,/ sem maior proveito/ que o da caça ao vento./ Não encontro vestes,/ não seguro formas,/ é fluido inimigo/ que me dobra os músculos/ e ri-se das normas/ da boa peleja.//

Iludo-me às vezes,/ pressinto que a entrega/ se consumará./ Já vejo palavras/ em coro submisso,/ esta me ofertando/ seu velho calor,/ aquela sua glória/ feita de mistério,/ outra seu desdém,/ outra seu ciúme,/ e um sapiente amor/ me ensina a fruir/ de cada palavra/ a essência captada,/ o sutil queixume./ Mas ai! é o instante/ de entreabrir os olhos:/ entre beijo e boca,/ tudo se evapora.

O ciclo do dia/ ora se conclui/ e o inútil duelo/ jamais se resolve./ O teu rosto belo,/ ó palavra, esplende/ na curva da noite/ que toda me envolve./ Tamanha paixão/ e nenhum pecúlio./ Cerradas as portas,/ a luta prossegue/ nas ruas do sono.

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