Thaís Nicoleti

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Pelé no dicionário

Novo verbete do dicionário Michaelis registra 'pelé' como substantivo comum

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Pelé é carregado durante a comemoração do título na Copa do Mundo de 1970, no estádio Azteca, na Cidade do México - Xinhua/Imago/Zumapress

Recentemente, o dicionário "Michaelis" decidiu incluir entre seus verbetes o nome Pelé, apelido do maior jogador de futebol de todos os tempos, morto em dezembro de 2022. "Pelé", agora grafado com inicial minúscula, passa a integrar o léxico da obra como substantivo comum, sinônimo de indivíduo "fora do comum, [...] que em virtude de sua qualidade, valor ou superioridade não pode ser igualado a nada ou a ninguém", e como adjetivo, equivalente a "inigualável", "incomparável", "excepcional".

Pode-se considerar a inclusão do termo no dicionário mais que uma homenagem individual ao "rei do futebol", pois Pelé, ao se notabilizar no esporte que mais caracteriza o nosso país, constituindo verdadeiro traço de nossa identidade cultural, representa o Brasil. Não à toa, este nosso imenso território é conhecido como "o país do futebol", onde se pratica o "futebol-arte", estilo de jogo tipicamente brasileiro, cujo ícone é o próprio Pelé, inspiração de gerações passadas e vindouras. Brasil, futebol e Pelé se misturam no imaginário não só dos brasileiros como de todos os povos.

O reconhecimento, por certo, foi bem acolhido pela população, mesmo considerando aquela parcela que julga Edson Arantes do Nascimento com algumas reservas por passagens de sua biografia. O curioso é que ele próprio se referia "ao Pelé" em terceira pessoa, como se o grande e incomparável atleta se desvinculasse de sua pessoa em alguma medida. Em todo o caso, polêmica à parte, quem virou verbete de dicionário foi o Pelé, não o Edson – o eterno Pelé, como muito foi dito, cujo legado não se pode pôr em dúvida.

Muita gente também ficou curiosa acerca dos critérios de inclusão de uma palavra no dicionário e da forma como isso é feito. De fato, constitui inovação inserir o nome de alguém no léxico como forma de homenagem e, mais ainda, fazê-lo mediante consulta pública e abaixo-assinado na internet, como se deu nesse caso. Independentemente do caminho incomum, era preciso, para justificar a inserção, haver apoio no uso concreto do termo no sentido proposto.

Não é novidade que é comum dizermos ou ouvirmos dizer que alguém é o Pelé da gastronomia, o Pelé da medicina, o Pelé do vôlei ou mesmo o Pelé da seleção feminina de futebol – enfim, empregarmos o nome de Pelé como sinônimo de "mais talentoso", "surpreendente", "melhor" etc. Foi com base nesse uso que o verbete foi estruturado. Esse tipo de construção, no entanto, ocorre ou pode ocorrer com outros nomes próprios que sejam representativos de alguma qualidade ou comportamento particular que se deseje transferir a outrem.

Quem se lembra da juíza Selma, candidata do Podemos que teve o mandato cassado em 2020, cujo apelido era "Moro de saia"? Em razão do forte discurso anticorrupção, ela foi associada, por analogia, ao juiz da Lava Jato, então paladino da causa. Na ocasião, a imprensa tratou a juíza como "a Moro de saia", com artigo feminino antes do nome masculino, o que nos leva a indagar por que, então, usar a locução "de saia". Esta serve naturalmente para dizer que se trata de uma mulher, ou seja, "o Moro de saia" ou uma versão feminina de (do) Moro.

Esse mesmo tipo de estrutura aparece em usos ocasionais. Se "o Shakespeare brasileiro" pode ser um dramaturgo que alcance a relevância ou as qualidades do referencial inglês, "um Pavarotti de chuveiro", em tom jocoso, pode ser o vizinho que solta a voz enquanto toma banho. Como se vê, ainda que Pelé mereça a homenagem, esse uso, em si, pelo menos à primeira vista, parece insuficiente para tornar comum o nome próprio, a menos, é claro, que a sua larga disseminação constitua o argumento definitivo.

Vejamos agora como foi estruturado o verbete no Michaelis:

pe.lé® adj m+f sm+f Que ou aquele que é fora do comum, que ou quem em virtude de sua qualidade, valor ou superioridade não pode ser igualado a nada ou a ninguém, assim como Pelé®, apelido de Edson Arantes do Nascimento (1940-2022), considerado o maior atleta de todos os tempos; excepcional, incomparável, único. Ele é o pelé do basquete. Ela é a pelé do tênis. Ela é a pelé da dramarturgia [sic] brasileira.

Em primeiro lugar, vemos "pelé" seguido do símbolo de marca registrada (sim, Pelé é marca) e, depois, classificado como adjetivo masculino e feminino (adj m+f) e como substantivo masculino e feminino (sm+f). Dessa classificação deduz-se (a) que o substantivo é comum de dois gêneros, admitindo, portanto, o artigo masculino e o feminino (o pelé, a pelé), e (b) que, como adjetivo, embora não haja nenhum exemplo no verbete, pode caracterizar termos masculinos e femininos (uma atitude pelé*, um comportamento pelé*). Os asteriscos indicam uso virtual, uma vez que faltam exemplos concretos. O emprego de artigo feminino antes de "pelé", por não ser frequente, soa um tanto artificial. Em geral, um uso se consagra antes de ser incluído no dicionário, não depois, mas vamos aguardar os acontecimentos.

Na abonação (exemplos), ocorreu um erro de digitação na palavra "dramaturgia", que já poderia ter sido corrigido (até o momento em que este texto é escrito, a grafia continua incorreta). Além disso, faltaram exemplos do termo usado efetivamente como adjetivo. Para tanto, poderia vir intensificado por um advérbio ("Ela estava muito pelé no jogo", "Ele é mais pelé que o amigo") ou como caracterizador de substantivo ("um drible pelé").

De qualquer forma, na boca do povo – particularmente nas peladas pelo país afora ou adentro –, "dar um pelezinho" é driblar o adversário numa jogada que imite as do grande Pelé. Esse uso mostra a vitalidade do termo e aponta para novas possibilidades criativas. Ouviremos um verbo "pelezar" algum dia?

Por ora, "pelé" – em minúscula – chega ao dicionário como um neologismo. A mudança de classe gramatical, chamada "derivação imprópria", é um dos fenômenos que explicam o surgimento de novos termos na língua. A passagem de nome próprio a nome comum dá-se quando os traços particulares de determinado ser desaparecem, deixando prevalecer o seu sentido mais geral.

É esse o caso de nomes de produtos inovadores. No Brasil, até hoje Danone é sinônimo de iogurte, o que se explica pelo pioneirismo da marca na comercialização do iogurte batido com frutas. Não está no dicionário, mas continua na boca do povo ("A garota me pediu um ‘danone’ de morango").

O inverso também ocorre: o nome comum se converte em nome próprio. É esse o caso de alguns sobrenomes, oriundos de nomes de acidentes geográficos (Rios, Ribeiro, Fontes, Fonseca), de animais (Leão, Coelho), de árvores (Carvalho, Nogueira, Pereira) etc. "Carrasco", por exemplo, é um sobrenome provavelmente oriundo de um nome de planta (o mesmo que "carrasqueiro"), mas se tornou um sinônimo de "algoz" por ser o sobrenome de um famoso executor de pena de morte – Belchior Nunes Carrasco – que teria vivido em Lisboa antes do século 15.

Como se vê, as palavras podem mudar de significado no decorrer de sua marcha. Tudo depende mesmo é do uso. Palavras inventadas em gabinetes podem até entrar no dicionário, como se deu com "ludopédio", uma criação do filólogo Castro Lopes (morto no início do século 20), que pretendia substituir o estrangeirismo "football" por um termo formado a partir do latim.

O fato é que os usuários da língua acharam por bem pronunciar o termo inglês em português (com os apoios vocálicos), o que levou à grafia "futebol". Tivesse vingado a invenção do gramático, Pelé seria o "rei do ludopédio". Será?

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